pra Susinha
que também vive vários papéis
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a costureira e o velho
pro
Guinga
errei a mão.
costurei
errado as esquinas e as dobras
ateando fogo
ao despido
que deixei
aos montes com teu paletó
viajei na
linha por teus retalhos
juntando o
que não devia
o branco o
xadrez e o nó
da tua barba
feito rendas
raspando meu
calendário
cacei
dedais, mas não enxergava
e te cravei
agulhas finas, te bordei
vermelho num
lenço
que joguei
fora, por engano
sujo de
suturas e curvas
que fiei te
desdobrando
para não
ficarmos mais
sós
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a desistente
desisto
pode
levar
a
casa os móveis bem polidos o marido
o pão
doce das tardes os beijos de café com
leite
as
nuvens o mel do corpo branco
as
cores alegres de Botero
me
lambendo
meu
estômago dói
pode
levar também
enfia
num buraco qualquer
em
alguma mochila vagabunda
ou na
bolsa de couro puro
porque
aqui ele não cabe mais
na
barriga desse país
doa
pro cínico esse falso humanista
com
seu lixo crítico seletivo resistente
ou
pra algum político fascista
travestido
de esquerda
pode
pode
passar metálica
com
seu furor burro e hipócrita
sobre
meu corpo
e não
esqueça de deixar os cacos expostos na calçada
pra
servirem de exemplo
aos
que pretenderem no futuro
a
beleza de um desejo em estado firme florescendo
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a hóspede
A taberna está cheia.
os homens apinhados
com as mãos lambuzadas
de gordura de frango
arrancam o pão
dos miolos
e gritam.
Uma mulher sentada num canto
rasga com uma faca
a côdea o livro o vestido
e a fissura da mesa
de madeira
em tom de ameaça:
detesto o vinho avinagrado de
tua visão
este pão esmolado fora do tempo
o queijo da tua presença me
enfastia
taberneiro me traz outro
um outro que não entorne à toa
que não fermente com exagero
um outro que caia perfeito
estes grunhidos surdos me enojam
estes ares de festa equivocada
me atacam
como os salteadores burros das
estradas
ninguém vai me comer sem que eu
não queira
como pasto ou banquete personne
me va a manger como um gato
que abandona a espinha pelada
você seu sujo
manda esta corja parar
ou eu deduro
como comem mal como são pequenos
como são cornudos
com seus sacos feridos de tanto
coçar
e nada fazerem pelo mundo
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a prisioneira
pra
Denise Stoklos
não vou. estou dobrada sobre
minha alma
sobre as minhas faltas
amarrada pelo medo como um
pacote
só, sem destinatário
observando o passo curto a muralha dos dias
e seus horizontes de pedra e
repetição
inexiste no corpo o macio das
solas
ninguém me anda sobre mim
o ventre estica e encolhe e
os pés
tomam o lugar das mãos
embolada dentro do mundo
não sei que colo me ampara
o que me pertence entre as
unhas e os cabelos
atriz andante, subo e desço
paredes
e grito contorcida
não vou. mesmo que abram as
portas
lá fora há rostos que
desconheço
da rainha que me quer morta
do áspero assustador dos corpos
do apavorante mosaico dos
espelhos
melhor daqui direto ao
cadafalso
aos tiros do morro repetidos a
cada dia
aos padrões da arruinada moral
zonasul-burguesa
assim vou saber ao certo, no
intervalo
quando realmente estiver morta
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a professora
o que deveria
te ensinar mesmo, não ensino
a deslizar
pelas coxas da madrugada
e chegar à
pele viva dos grandes lábios de um livro
e a enfiar os
dedos os ouvidos
na seda
oriental das palavras
mas você só
vê caralhos em lugar de signos
e tiros
burros vindos de aviões famintos
deitados no
pó, pra onde regressarás
de borco nos
morros com aerres quinze
e nunca
saberás
da penugem
doce das páginas de linho
sobre os
pequenos instantes das polpas das línguas
enfiadas no
mergulho ávido num outro mundo
construído
sem mortes
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consulta
pra Isabel
Meyrelles
onde dói? pergunta o
especialista
à poetisa espantada
não sei, aqui, ali, lá
e o que dói? expressa
interessado
e científico. não sei. o que
existe
não me nomeia. posso
somente apontar em que parte,
correspondo obtusa. e qual
o lado me faz gritar quando
ensejo. é uma dor desnomeada
ou uma indecifrável desmontada
(questão nada nova), se coça
com radares e um monólogo
Ele, o Grande Médico
quebra a cabeça
enquanto cada parte minha
se excita e decide ir à caça
amarro o especialista
para que fique quieto
e o agrado com um pequeno
pedaço de pelanca
retirado de um poema
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Iracema
chupo o sal das tuas costas
meu guerreiro branco, não há
nada errado
enquanto trepo e alcanço os
doces sapotis
lá do alto, do teu dorso
vejo um outro Rio
e tupã me visita
sem cauim
você veio quando nassau errou
de porto
e nós mudamos a história
os positivistas ainda não
chegaram
nem alencar nem rousseau
nem o superego nem os
imperialistas nem os vizinhos
ainda posso ficar viva
ainda não é dia de trabalho
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Teresa
pro
Castro
dancei com ele para esticar as pernas
para que ele coitado tivesse companhia
e não passasse a noite olhando chapinhas
e ratos imaginários sob as mesas
envolvi-o num tango seco
enxuto de guardanapos
batata sobre batata
para que ele coitado
meio bambo meio
gozado
não visse a vida de perto
e passei nele as unhas vermelhas
dos dias que andei raspando
deixei nele alguma marca
para que existisse história
agora ele só fala nisso
(a culpa não é minha)
com a voz rouca de absinto
a última vez que vi Teresa!
sempre com os olhos perdidos
num bailar obsessivo
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sebastiana
pra quê pra quê
pra quê pra quê pra quê
estes braços para o alto
estas flechas burras pequenas
meu corpo não é alvo besta
e eu não quero ressuscitar
nesta praça do Rio de Janeiro
o Getúlio mora ao lado
e eu detesto esse papo
de pai dos pobres do presidentinho que morreu de tiro
de vítima da história
chega de gozo de coitadinhos
de ser capa de livro de
psicanálise
tantos buracos no corpo
tantos fugindo de balas perdidas
se sou santa que me tratem com deferência
que me deem altares à altura
eu mereço outra cidade outra mentalidade
menos falida
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Emília
pra Bibi
nasci do olhar espantado do
poeta
para perguntar para que serve
isto ou aquilo
nasci para ser de 2ª classe
com uma perna em cada mundo
atravessada entre o original e
o pastiche
com o verbo arregalado vou
andando
carregando o meu ridículo
até o infinito
mas sou eu que faço a história
interessante
porque meio de carne meio de pano
sou eu que me mando
e estico a língua para quem me
assiste
porque eu sei que é por inveja
que tentam me empurrar para a
burrice
na verdade meu olhar é único
colorido descondicionado
eu olho como autora que sou
de todo este sítio incrível
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pequeno coito oriental
descascava a saia lentamente
pensando em chupar seu pênis
você a sonhava nua
e ela construía enredos
os quais contava, toda noite
um pouco para passar o tempo
enquanto saía da casca:
sabe o que sentia a mulher que
era alvo
num espetáculo de facas?
e a surrealista que pensava o
mundo
dentro de um cubo vermelho
sonhado por uma estátua?
e a coitada que não queria
ser dona de sete saias
e só seduzia
porque não sabia
ou não podia
fazer mais nada?
Sherazade se cansava
e numa noite sem delicadeza
sem véus labirintos viagens histórias
se despiu do próprio corpo e
fugiu nua
depois de mil e uma noites
inúteis
sem descobrir nunca que o
sultão era surdo
porta afora
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lítico
nunca consegui fluir
Eu sou a pedra.
pesada
redonda conservadora dura
só isto explicaria
a minha solidão atroz
ou estes tantos nós
este emaranhado agudo de quem não se funda
de quem conta o tempo para trás
pelo desgaste
no entanto já vivi todas
as esperadas
coloridas delicadas anônimas
manhãs que passavam
todas em que eu pude me agarrar
para viajar
até que alguém me cutucou
e me lembrou minha condição tão burra
de pedra a
inflexível
a dura a
assalariada
a mal-amada a
que não anda
a que estacionou numa estrada de água
à margem
e eu tão pedra assimilei
a minha petrificação atônita
deixei-me ficar num Rio sem defesa
sem ao menos tentar me quebrar com força
e me tornar inúmeras
grande ou pequena
mas na correnteza
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o pássaro
voo aborrecida
anunciando a despaisagem
se gritam por aí eu me jogo
burramente atrás das tardes
às vezes a solidão
às vezes nem tanto
que se possa chamar saudade
só sei que renego as cinzas
fênix é para covardes
viver é inteirinho
viver pela metade
e se aqui enchem os passarinhos
lá fora as metralhadoras ardem
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o cético
Embora outubro venha me
destituir o mundo
e encher as peles das esquinas
de alergia
e empolar os fatos e os dias
e embora a cegueira seja
constante
e esse azul se exiba como
traficante
nessa Babel babada
e se esmole tempo e
reconhecimento
e os filhos únicos se
esfaqueiem como súditos
e esse Cristo abra as pernas
para os políticos
me lanço ao Rio furiosamente
e nado para alcançar um novo
lado
embora seja nesse outubro burro
embora o que se chama outro
pareça margem
muro
murro na cara
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o paranoico
essas drogas de formigas estão por toda parte
me cobrando arroz açúcar salário
tenho que me prevenir
tenho que embalar
o que sobrou
da mais-valia desse estúpido povo
que entra onde não devia
na hora errada
todos em fila repetidos
iguais
iguais iguais
sem gritos nem perguntas
pra lá e pra cá entram e saem
mas sei que esse silêncio é suspeito
a prova disso é a quantidade de filhos
que fazem
a forma como se espalham
sem lei e sem critério
quando não estão no trabalho
ontem vi que alguns me olhavam
torto
com ares de conspiração
tenho que me precaver tenho que guardar
a moral burguesa
que sobrou
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o mal-andante
com o couro de bode o ruim na cintura
as certezas rachadas o cangaço na cara
o ódio em riste o bafo de faca
e o grude nojento da perda na
carcaça
pisando na bestice dessa
madrugada
o tiro pro alto o salto pro escuro
uma noite de macheza burra
embrutecida falsificada
e um gosto burro de moral da
história
aqui se mula
aqui se paga
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o marinheiro
vinte lambadas de varas
vinte pisadas e mais vinte
cusparadas na cara
Senhor, são o suficiente
foi só um o meu crime
não mereço esses vinte
e tantos meses sem vento
esse mar estagnado sob os braços
essas galés de brinquedo
quero singrar Senhor
cortar o globo ao meio
alçar as velas do peito
tomar com firmeza meu leme
ou então
deixai-me nadar Senhor
até que as ondas altas me cheguem
para que eu possa lutar
contra esse destino sem jeito
nasci para a maresia e para o movimento
não mereço esse azul bruto nos olhos
esse horizonte tão lento
deixai-me então com meus cascos
arremessar-me contra os rochedos
foi só um o meu crime
não Multiplicai meus tormentos
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pro Zé
corsário: é um fato
espero o mar encher meu saco
para rebolar em teu peito
e possuir-te nas rochas
até quebrar os teus feitos
e ver as tuas espumas
espalharem-se na barriga das
brumas
e te pegar pelas costas como
mouro
pelas velas pelas cordas
traiçoeiro
e te enfiar a minha espada
afiada
e bafejar o meu vinho viscoso
no teu pescoço
e te obrigar ao meu destino
corso
te comprar e te vender em cada
porto
para ser ilegal para ser sorrateiro
e te obrigar a deitar
pelos cascos
sempre que o mar
parar
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porque tarzan
amava os macacos
de galho em galho
os músculos crescendo
sem ter o que fazer
sem ninguém pra conversar
o saco coçando
cheio de hormônios
o pobre rapaz
não tinha paz
ao se olhar no lago constatava
a diferença
em que vivia
com a macacada
todos peludos veludosos bonitos
e ele ali tão pelado
tão horrivelmente depilado
pra não se afogar em si mesmo
resolveu fazer contato
e amou tocar num macaco
que com ele falou
desde então não quis outra coisa
esse mar de pelos fofos
reconfortantes consoladores
que o levaram a esquecer
o frio da floresta
e seu estado de abandono
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o sapo
se o poço existe, estou nele
primeiro
sou tão feio mas sou tão moço
a minha primeira esperança
um beijo quente e meloso
pra sair desse sufoco
e se princesas não existirem
ainda tenho o privilégio
de sempre ter vivido no fundo
e de lidar com o mau cheiro
lodoso
e de ter me acostumado
com ele
antes dos outros
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o oráculo
É. o pão será roubado da poesia
e com o suor do teu corpo
teu rosto será arrancado
já a da direita mostra
que haverá noites de luas frígidas
com deuses surdos e bestas
montados nas tuas costas