segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

  o que te desespera minha bela
  consciência dessa noite nua
  o que tiras? Vozes inconclusões
  nódoas de dúvidas da camisa
  espreitando palavras que tentas
  decifrar enquanto sozinha de música e de
  vida repetes até a exaustão a fabulação
  de teus dias

  o que pretendes minha única
  saída quando mergulhas pelo verbo buscando
  ávidas combustões tortuosas
  portas por onde entrar pelo humano
  vão adentro acossada pelos mares
  irrecuperáveis da angústia

  o que queres minha fera
  particular com teu luto de festa
  agarrando frestas enfrentando
  bestas escondidas tentando
  alcançar a minha bela
  com tuas garras lixadas e polidas?
Invejas 1 (quero ser e. e. cummings)

                                     pra Rose

sobra levemente sobre meus lábios
um sopro fino  o outro lado
a esperança que às vezes pega um
ônibus e não sabe para onde ir e 
eu a acompanho a aconselho a esperar
por melhores dias que não fique assim
tão sem atalhos o cotidiano é recolher pássaros pelos 
lados e seus cantos de viver mas a esperança
não se deixa convencer e eu ralo escoo meus momentos
para tomá-la novamente pelo braço e conduzi-la
minha velha comadre que seria de nós sem
nós mesmas (não quero falar como homem) mas
é inevitável esse convívio com o árduo o indefensável
que anda tão aparentemente cíclico pairando
sobre nossas cabeças

terça-feira, 1 de julho de 2014

AS PROFISSÕES

        

pra Susinha
que também vive vários papéis

                                          ----------xx---------
                                
                     a costureira e o velho
                                pro Guinga

errei a mão.
costurei errado as esquinas e as dobras
ateando fogo ao despido
que deixei aos montes com teu paletó
viajei na linha por teus retalhos
juntando o que não devia
o branco o xadrez e o nó
da tua barba feito rendas
raspando meu calendário
cacei dedais, mas não enxergava
e te cravei agulhas finas, te bordei
vermelho num lenço
que joguei fora, por engano
sujo de suturas e curvas
que fiei te desdobrando
para não ficarmos mais
sós

                                  ----------xx---------
                             
                           a desistente

desisto
pode levar
a casa  os móveis bem polidos  o marido
o pão doce das tardes  os beijos de café com leite
as nuvens  o mel do corpo branco
as cores alegres de Botero
me lambendo

meu estômago dói
pode levar também
enfia num buraco qualquer
em alguma mochila vagabunda
ou na bolsa de couro puro
porque aqui ele não cabe mais
na barriga desse país

doa pro cínico  esse falso humanista
com seu lixo crítico seletivo resistente
ou pra algum político fascista
travestido de esquerda

pode
pode passar metálica
com seu furor burro e hipócrita
sobre meu corpo

e não esqueça de deixar os cacos expostos na calçada
pra servirem de exemplo
aos que pretenderem no futuro
a beleza de um desejo em estado firme florescendo

 -                                          ---------xx---------

                                        a hóspede


A taberna está cheia.
os homens apinhados
com as mãos lambuzadas
de gordura de frango
arrancam o pão
dos miolos
e gritam.

Uma mulher sentada num canto
rasga com uma faca
a côdea o livro o vestido
e a fissura da mesa
de madeira
em tom de ameaça:

detesto o vinho avinagrado de tua visão
este pão esmolado fora do tempo
o queijo da tua presença me enfastia

taberneiro me traz outro
um outro que não entorne à toa
que não fermente com exagero
um outro que caia perfeito

       estes grunhidos surdos me enojam
       estes ares de festa equivocada me atacam
       como os salteadores burros das estradas

      ninguém vai me comer sem que eu não queira
      como pasto ou banquete  personne
      me va a manger como um gato
      que abandona a espinha pelada

      você seu sujo
      manda esta corja parar
      ou eu deduro
      como comem mal  como são pequenos
      como são cornudos
      com seus sacos feridos de tanto coçar
      e nada fazerem pelo mundo

                                     ---------xx---------

                                    a prisioneira
                                    pra Denise Stoklos


não vou. estou dobrada sobre minha alma
sobre as minhas faltas
amarrada pelo medo como um pacote
só, sem destinatário
observando o passo curto  a muralha dos dias
e seus horizontes de pedra e repetição

inexiste no corpo o macio das solas
ninguém me anda sobre mim
o ventre estica e encolhe e
os pés
tomam o lugar das mãos

embolada dentro do mundo
não sei que colo me ampara
o que me pertence entre as unhas e os cabelos

atriz andante, subo e desço paredes
e grito contorcida


não vou. mesmo que abram as portas
lá fora há rostos que desconheço
da rainha que me quer morta
do áspero assustador dos corpos
do apavorante mosaico dos espelhos

melhor daqui direto ao cadafalso
aos tiros do morro repetidos a cada dia
aos padrões da arruinada moral zonasul-burguesa
assim vou saber ao certo, no intervalo
quando realmente estiver morta

                                      ---------xx---------


                                         a professora


o que deveria te ensinar mesmo, não ensino
a deslizar pelas coxas da madrugada
e chegar à pele viva dos grandes lábios de um livro
e a enfiar os dedos os ouvidos
na seda oriental das palavras

mas você só vê caralhos em lugar de signos
e tiros burros vindos de aviões famintos
deitados no pó, pra onde regressarás
de borco nos morros com aerres quinze
e nunca saberás

da penugem doce das páginas de linho
sobre os pequenos instantes das polpas das línguas
enfiadas no mergulho ávido num outro mundo
construído
sem mortes

                                   ---------xx---------

                                    consulta 
                                 pra Isabel Meyrelles

onde dói? pergunta o especialista
à poetisa espantada
não sei, aqui, ali, lá
e o que dói? expressa interessado
e científico. não sei. o que existe
não me nomeia. posso
somente apontar em que parte,
correspondo obtusa. e qual
o lado me faz gritar quando
ensejo. é uma dor desnomeada
ou uma indecifrável desmontada
(questão nada nova), se coça

com radares e um monólogo
Ele, o Grande Médico
quebra a cabeça
enquanto cada parte minha
se excita e decide ir à caça

amarro o especialista
para que fique quieto
e o agrado com um pequeno pedaço de pelanca
retirado de um poema

                                         ---------xx---------

                        Iracema

chupo o sal das tuas costas
meu guerreiro branco, não há nada errado
enquanto trepo e alcanço os doces sapotis

lá do alto, do teu dorso
vejo um outro Rio
e tupã me visita
sem cauim

você veio quando nassau errou de porto
e nós mudamos a história

os positivistas ainda não chegaram
nem alencar  nem rousseau
nem o superego nem os imperialistas nem os vizinhos
ainda posso ficar viva
ainda não é dia de trabalho

                                     ---------xx---------


                                 Teresa
                                pro Castro

dancei com ele para esticar as pernas
para que ele coitado tivesse companhia
e não passasse a noite olhando chapinhas
e ratos imaginários sob as mesas

envolvi-o num tango seco
enxuto de guardanapos
batata sobre batata
para que ele coitado
meio bambo  meio gozado
não visse a vida de perto

e passei nele as unhas vermelhas
dos dias que andei raspando
deixei nele alguma marca
para que existisse história

agora ele só fala nisso
(a culpa não é minha)
com a voz rouca de absinto
a última vez que vi Teresa!
sempre com os olhos perdidos
num bailar obsessivo

                                  ---------xx---------

                                       sebastiana

pra quê  pra quê  pra quê  pra quê  pra quê
estes braços para o alto
estas flechas burras  pequenas
meu corpo não é alvo besta
e eu não quero ressuscitar
nesta praça do Rio de Janeiro

o Getúlio mora ao lado
e eu detesto esse papo
de pai dos pobres  do presidentinho que morreu de tiro
de vítima da história

chega de gozo de coitadinhos
de ser capa de livro de psicanálise

tantos buracos no corpo
tantos fugindo de balas perdidas

se sou santa  que me tratem com deferência
que me deem altares à altura
eu mereço outra cidade  outra mentalidade
menos falida

                                  ---------xx---------

                                     Emília 
                                    pra Bibi


nasci do olhar espantado do poeta
para perguntar para que serve isto ou aquilo
nasci para ser de 2ª classe
com uma perna em cada mundo
atravessada entre o original e o pastiche

com o verbo arregalado vou andando
carregando o meu ridículo
até o infinito

mas sou eu que faço a história interessante
porque meio de carne  meio de pano
sou eu que me mando

e estico a língua para quem me assiste
porque eu sei que é por inveja
que tentam me empurrar para a burrice

na verdade meu olhar é único
colorido  descondicionado
eu olho como autora que sou
de todo este sítio incrível

                               ---------xx---------

              pequeno coito oriental

descascava a saia lentamente
pensando em chupar seu pênis
você a sonhava nua
e ela construía enredos
os quais contava, toda noite
um pouco para passar o tempo
enquanto saía da casca:
sabe o que sentia a mulher que era alvo
num espetáculo de facas?
e a surrealista que pensava o mundo
dentro de um cubo vermelho
sonhado por uma estátua?
e a coitada que não queria
ser dona de sete saias
e só seduzia
porque não sabia
ou não podia
fazer mais nada? 

Sherazade se cansava
e numa noite sem delicadeza
sem véus  labirintos  viagens  histórias
se despiu do próprio corpo e fugiu nua
depois de mil e uma noites inúteis
sem descobrir nunca que o sultão era surdo
porta afora

                                     ---------xx---------

                                      lítico 

nunca consegui fluir
Eu sou a pedra.
pesada  redonda  conservadora  dura
só isto explicaria
a minha solidão atroz

ou estes tantos nós
este emaranhado agudo de quem não se funda
de quem conta o tempo para trás
pelo desgaste

no entanto já vivi todas
as esperadas  coloridas  delicadas  anônimas
manhãs que passavam
todas em que eu pude me agarrar
para viajar 

até que alguém me cutucou
e me lembrou minha condição tão burra
de pedra  a inflexível
a dura  a assalariada
a mal-amada  a que não anda
a que estacionou numa estrada de água
à margem

e eu tão pedra assimilei
a minha petrificação atônita
deixei-me ficar num Rio sem defesa
sem ao menos tentar me quebrar com força
e me tornar inúmeras 
grande ou pequena

mas na correnteza

                                  ---------xx---------

                                   o pássaro

voo aborrecida
anunciando a despaisagem
se gritam por aí  eu me jogo
burramente atrás das tardes

às vezes a solidão
às vezes nem tanto
que se possa chamar saudade

só sei que renego as cinzas
fênix é para covardes
viver é inteirinho
viver pela metade

e se aqui enchem os passarinhos
lá fora as metralhadoras ardem

                   ---------xx---------


                            o cético 

Embora outubro venha me destituir o mundo
e encher as peles das esquinas de alergia
e empolar os fatos e os dias

e embora a cegueira seja constante
e esse azul se exiba como traficante
nessa Babel babada

e se esmole tempo e reconhecimento
e os filhos únicos se esfaqueiem como súditos
e esse Cristo abra as pernas para os políticos

me lanço ao Rio furiosamente
e nado para alcançar um novo lado

embora seja nesse outubro burro
embora o que se chama outro pareça margem
muro
murro na cara

                            ---------xx---------

                              o paranoico 

essas drogas de formigas estão por toda parte
me cobrando arroz açúcar salário
tenho que me prevenir  tenho que embalar
o que sobrou
da mais-valia desse estúpido povo
que entra onde não devia
na hora errada

todos em fila repetidos
iguais  iguais  iguais
sem gritos nem perguntas
pra lá e pra cá entram e saem

mas sei que esse silêncio é suspeito
a prova disso é a quantidade de filhos
que fazem
a forma como se espalham
sem lei e sem critério
quando não estão no trabalho

ontem vi que alguns me olhavam
torto
com ares de conspiração
tenho que me precaver  tenho que guardar
a moral burguesa
que sobrou 

                                ---------xx---------

                               o mal-andante 
                             
com o couro de bode  o ruim na cintura
as certezas rachadas  o cangaço na cara
o ódio em riste  o bafo de faca
e o grude nojento da perda na carcaça

pisando na bestice dessa madrugada
o tiro pro alto  o salto pro escuro
uma noite de macheza burra
embrutecida  falsificada

e um gosto burro de moral da história
aqui se mula
aqui se paga

                 ---------xx---------

   o marinheiro 

vinte lambadas de varas
vinte pisadas e mais vinte
cusparadas na cara
Senhor, são o suficiente
foi só um o meu crime

não mereço esses vinte
e tantos meses sem vento
esse mar estagnado sob os braços
essas galés de brinquedo

quero singrar Senhor  cortar o globo ao meio
alçar as velas do peito
tomar com firmeza meu leme

ou então
deixai-me nadar Senhor
até que as ondas altas me cheguem
para que eu possa lutar
contra esse destino sem jeito 

nasci para a maresia e para o movimento
não mereço esse azul bruto nos olhos
esse horizonte tão lento
deixai-me então com meus cascos
arremessar-me contra os rochedos
foi só um o meu crime
não Multiplicai meus tormentos

                     ---------xx---------

                     pro Zé


corsário: é um fato
espero o mar encher meu saco
para rebolar em teu peito
e possuir-te nas rochas
até quebrar os teus feitos
e ver as tuas espumas
espalharem-se na barriga das brumas
e te pegar pelas costas como mouro
pelas velas  pelas cordas
traiçoeiro

e te enfiar a minha espada afiada
e bafejar o meu vinho viscoso
no teu pescoço

e te obrigar ao meu destino corso
te comprar e te vender em cada porto
para ser ilegal  para ser sorrateiro
e te obrigar a deitar
pelos cascos
sempre que o mar
parar

               ---------xx---------

porque  tarzan amava os macacos

de galho em galho
os músculos crescendo
sem ter o que fazer
sem ninguém pra conversar
o saco coçando
cheio de hormônios
o pobre rapaz
não tinha paz

ao se olhar no lago constatava
a diferença
em que vivia
com a macacada

todos peludos veludosos bonitos
e ele ali tão pelado
tão horrivelmente depilado

pra não se afogar em si mesmo
resolveu fazer contato
e amou tocar num macaco
que com ele falou 

desde então não quis outra coisa
esse mar de pelos fofos
reconfortantes consoladores
que o levaram a esquecer
o frio da floresta
e seu estado de abandono

            ---------xx---------

                          o sapo 

se o poço existe, estou nele primeiro
sou tão feio mas sou tão moço

a minha primeira esperança
um beijo quente e meloso
pra sair desse sufoco

e se princesas não existirem
ainda tenho o privilégio
de sempre ter vivido no fundo
e de lidar com o mau cheiro
lodoso
e de ter me acostumado
com ele
antes dos outros

     ---------xx---------

           o oráculo 

É. o pão será roubado da poesia
e com o suor do teu corpo
teu rosto será arrancado

já a da direita mostra
que haverá noites de luas frígidas
com deuses surdos e bestas
montados nas tuas costas