segunda-feira, 17 de março de 2014

AS PROFISSÕES em dois dedos de prosa



                                                               4ª. Feira


          Não Sr. Professor, não entendi. Não estava prestando a devida atenção. Meu olho direito colou na retina plástica de seus olhos castanhos. O outro sentiu um pedaço de seu tórax à mostra entre os botões da camisa. Enquanto minha mão alisava a sua verruga preferida, eu esqueci o nome do tal poeta.
          Não, não acho. Não acho que esta história entre professor e aluna seja irrelevante. Minha calcinha fica molhada quando o Sr. cita os filósofos.
          Baixaria? Comer o pão que o caralho do presidente e dos empresários amassaram, o Sr. acha normal. Passar o dia sem poder comprar um copo de refrigerante num calor de 40º, babar as vidraças das livrarias que nem cão de Pavlov, cair estonteada diante do arsenal de músicos que este país tem e não poder comprar um mísero CD são coisas relevantes?
          O quê? Vou, vou com prazer. Mas antes de ir, te dou este papel, queridinho, com o meu número de telefone. Posso fazer coisas incríveis com a língua, trabalhá-la, encaixar certinho o teu pronome pessoal sujeito à minha predicativa vontade. Mexo nas frases de um jeito ordinário e catastrófico. O Sr. vai gozar montanhas de pontuações e vai gostar muito, podendo assim corrigir o que há de errado na minha comuníssima e banal humanidade de mulher tropeçada de povo.


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                                                12 de junho


          Amô da minha vida, eu vi teu anúncio no jornal. Também te amo bem, tu não precisava exagerar, aquelas letras tão grande, cheia de coraçãozinhu. Mermo depois daquele dia que você me bateu e me chamou de escrota e eu levei uns pontos. Porque o amor é assim mermo, né, às vezes a gente se estranha.
           Cê me chamava de gostosa antes daquela puta entrar na história. Lembra? Quando a gente se conheceu, eu tava de vestido colado branco transparente. Salto plataforma (era moda) e brinco de estrasse. Você foi logo me agarrando e dizendo que mulher tua não usava batom tão vermelho, e me fez tirar, porra, tu me tirou o batom com a manga da camisa, enquanto me apertava, tanto que eu não podia respirar. Que homem! Ali mesmo eu caí, pretinho, na tua. Desde deste dia.
          Faz mais de 6 meses que eu não te vejo, ai meu Deus, já tava com desgosto. Ontem fui à igreja (eu sei que o dia de ir era hoje, mas não ia dar tempo, fiquei dando uma força pra D. Rosa e pro Seu Manueu, tomando conta do Uoshington José, que é pra eles saírem. É um menino tão bonzinho, fala sempre de você!).
          Mas agora eu sei, se tu botou o anúncio, é porque me quer de volta. E eu vou benzinho, pur isso tô escrevendo esse bilhete. Seu Manueu vai passar aí mais tarde, pra te entregar. (Fala direito com ele, tá?)
         Me espera Mozinho, que eu vou com tudo em cima. Eu perdoo, eu perdoo tudo, eu sei que foi macumba que aquela zinha fez pra te prender. Mas o meu santo é mais forte! E depois, um amô assim, nem precisa de viagra!
           
                                                Da tua Vavaninha


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                                                   turismo


          O único incidente que quase, sublinho, quaaaase estragou a minha estadia nesta terra maravilhosa e antiga foi o pulo que um homem, um animal a bem da verdade, deu sobre mim, arfando e grunhindo, estragando, melhor dizendo, estropiando essa língua tão bela, encostando a dele nojenta no meu pescoço, tentando agarrar o meu ombro com uma das mãos.
          Eu lhe ofereci o meu colar raro da Índia, de âmbar, cariiiíssimo, os olhos da cara, aquele com uma pequena deusa cheia de braços, mas ele continuou sem entender que eu não iria resistir porque sou uma mulher muito frágil e um tantinho doente dos nervos, que morria de cansaço só de pensar nas lojas que teria que entrar, que ele podia roubar as minhas joias, a minha pulseira de madrepérola com brilhantes falsos ou os meus brincos banhados a ouro, tanto fazia. Assim tive que tomar uma atitude drástica, tirei tudo e, num gesto heroico, coloquei dentro de suas mãos e as fechei como se dissesse tudo bem pode levar, mas ele não se contentou, queria também o meu vestido, aquele que comprei à Paris, na Avenue..., lembra, numa liquidação de fim de outono. Foi o cúmulo da brutalidade querer desse modo aquele tecido de voal forrado com aquele crepe bem cortado em tom pálido, quase rosa-chá!
         Não vi mais nada e bati, tirei o meu sapato e bati bem batidinho, aquele que era uma doçura de escarpanzinho, aquele que comprei naquele dia mesmo, nem te contei, enquanto você foi ao toalete, naquele passeio inesquecível rumo à civilização. Só assim o monstro me largou, quando o saltinho delicado lhe perfurou a têmpora direita e saltou um sangue fininho, lembrei daquelas sianinhas turcas bem vermelhinhas que enfeitavam aquele véu que eu desejei tanto daquela mulher gorda e feia e desajeitada que não ficava nada bem com ele e mesmo assim não quis me vender, e eu tive, imagine, que puxar com força e quase rasgou, que estrago, aquela sem eira nem beira que andava pensando que ainda estava na sua terra de pagãos. Foi a mesma raiva que eu tive do homem nojento, a da mulher gorda, gente igual, sem gosto.
         Ele ficou lá estirado e meio roxo, parecia um sapo mal-amado, banhudo, essa ralé é sem graça, não se cuida, logo hoje em dia que é possível fazer tantas dietas, colocar um botox ou tirar uma costelinha para delinear uma cinturinha que Deus poderia ter nos dado, ou mesmo uma simples lipoaspiração!


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                                              reencontro


          Estava num desses dias em que o céu parecia despencar sobre a cabeça. Caminhou um pouco, molhando os pés nas poças d’água, até esbarrar num corpo duro que também transitava. Pela força do tranco, parecia uma barra de ferro. É. Uma barra de ferro. Mas era uma moça, que o olhou baixo, surpresa, com seus olhos oblíquos. Que mistério. Ele começou a andar atrás daquele corpo fino e enrolado num quimono oriental vermelho. Aonde iremos.
          Entrou e saiu de becos. A cidade sumiu. O ambiente minava uma fumaça de gelo seco. Que palco. O próximo cenário era quase um deserto: uns cacos de vidro, umas gotas de sangue seco, o chão de pé de moleque, paredes altas de sobrados antigos. Uma mecha lisa e preta passou rápida e acompanhou o ar. Quase.
          Dobrando a próxima esquina, um beco sem saída. É agora. Os olhos oblíquos negros contrastavam com a pele branca. A mãozinha foi crescendo crescendo e gritou. Me chamo Capitu!
          Um tabefe monstruoso estalou no ar. A boca aberta, os dentes enormes, a barbatana pontiaguda, os pelos eriçados. Bentinho sentiu os dois metros a mais, as garras grandes atravessando-lhe as pernas, o peito, a pele, os braços. Ah, a liberdade, pensou, enquanto fechava os olhos e dançava.     














sexta-feira, 14 de março de 2014

SOBRE OS DEUSES



                      Mais vale um toma do que dois te darei.  
                                                               
                                                            Sancho Pança                                    

                                         pro Uly


                                                                
                            alvíssaras

antes tudo era perfeito
eras um deus irremovível
quase monumento  quase labirinto

intacto em músculos certos
plantado no jardim do inquestionável
eras silêncio
dentro de meu pátio interno

mas deuses também se esgarçam
corroídos pelo tempo
e são castigados por suas ações
ou pela falta delas

e porque deuses são nascidos de coxas
cuspidos flechados abandonados violentados
e não passam de Ideias
tão substituíveis por seu iguais
te envio por Mercúrio os bons augúrios
que tive
de que destituído não serás mais deus
por aqui
           durante eras  


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                                              capetalismo
                               
                                             termo do poeta Gentileza


milagres são para deuses e santos
para os que detêm o poder  para os que olham por cima
numa reta fria abstrata
traçada desde o berço  sobrevoada de helicóptero ou asas
até a áfrica  até o oriente  até o indecente
do abandono

aos humanos resta a porta dos fundos
os planos sem saúde  a coceira  os crediários  a alergia
os bons ventos  os maus momentos
o parcelamento
da fé  do afeto  da alma

eu sou uma das inadimplentes
devendo uma grande dorzinha
uma entranhada fome inapetente
uma estranha frigidez insaciável de bens
uma sede de maravilhas
  
quando aperto a mão de um deus
ou quando um santo me pede um boquete
em troca de uma vaga no mundo
um inamerceável afago  um parco salário
sonho com um exorcista
que me salve de algum milagre


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                                cenário


todo vísceras  todo carne
um deus passeia sobre os arames

toca cordas densas  toca o duro ferro dos altares
e dança leve  mastigando
sua desamparada condição de deus

um ator moreno entre o através
da fechadura
onde um olho esticado se ajoelha
e se apieda
enquanto cola cacos e vive
de falsos mosaicos
e estende o chapéu e trama
entreaberta  entre atos
se despir
para o deus


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                          concepção

                                                                                         

hoje os monstros acordaram assanhados
o Hades está em festa
e as Erínias estão gritando vem vem vem
Não vou.

estou cheia destas bestas enlameadas que se arrastam com farrapos
elas que vão ser trágicas na puta que pariu

tenho em mim encravada uma grande pedra azul
meu ventre está sólido e iluminado
e conduzo o tempo nas mãos porque assim me foi dado

me banho para os deuses
para ser mais precisa
me purifico com artemísia e bálsamos
e tenho a pele lisa e amaciada
para ir ter apenas com um deus
que foi prenunciado pelos oráculos
conceberemos um Rio em poucas horas
de entre as suas coxas saltarão as águas
que eu chamarei (em êxtase) Janeiro


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                                        desejos 

deuses pediram olimpos  céus com zeus  colchões macios
pastilhas para a garganta  filhas no cio
ninguém contou a eles
que deuses não moram mais
porque estão inadimplentes

devem aqui na terra
pilhas de adorações
que receberam adiantado
e não saldaram

os choros humanos  os joelhos esfacelados
um Rio depauperado
seus círios
a queima de dias áridos
os tiros
mas nem assim se coçaram

a cidade está doente
míope  degradada
por contar com deuses dormentes

deuses não moram mais
deixaram seus leitos imortais
seus incestos  cartéis  pedofilias  serpentes
intrigas de última hora
para viver entre as gentes

deuses não moram mais
e tropeça-se agora neles
amontoado de animais
sem políticas oficiais
um problema social a mais
a ser resolvido por nós


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                  destinação


nesse dia bruto  empalhado
desejo é tudo o que não pode ser

deve haver leite nas pedras
deve ter um jeito de espremer
essa tarde até que ela confesse
algum brilho escondido

o melhor é enfiar as pernas ao comprido
suplicar aos deuses  chamando-os à razão
beijando seus auspícios
chupá-los do falo até que se ergam
e nos destinem
o mundo


                                  ----------xx---------


                              deuses


deuses têm peles desbotadas
e sobem degrau por degrau
por nossas costas

conspiram segredinhos  afiam as unhas
e cravam em nós
seus gostos pelo lixo

um cargo  uma mordida  uma mortalha
deuses são tão críticos
saracoteiam suas falas
e tramam publicações

deuses nos sabem mais 
por isso
saudemos os deuses
pois sem eles
o que seria de nós
sem títulos  diluídos
esparsos por linhas e folhas
novos velhos escritores
ignorados ocupando
os rascunhos dos nossos postos

adendo: mas por que temer os deuses
se eles sempre existiram?


                            ----------xx---------


           nosso olimpo   
              
deuses legam
deixam isto  deixam aquilo
tudo o que fazem
são grandes feitos
de um barro escolhido a dedo
por isso protegem
com suas mãos em concha
seus preciosos herdados metais

já as deusas
têm mania de roupas suadas
e passam longas os dias
e ajoelham por nada
e por serem de costelas
pensam sempre na segunda:
tecer semanas de cabo a rabo
para que propiciem falos
aos deuses
uma boa vigília  seus legados
e bom trabalho


                             ----------xx---------


          o bêbado e seu companheiro 

você que se faça de rogado
que eu hoje não posso
comigo e com meu fígado

estou duro como um rochedo
bebi ontem meu passado inteiro
de um só trago

promete, Prometeu
parar de roubar
e ficar por aí dando à toa
o que não é pro nosso bico

olha essa gente lá embaixo
distribuindo santinhos
querendo ocupar seu posto
olha no que dá ser deus
e ficar desempregado

cuidado com esses abutres
e com esses deuses inteiros
que caminham bem-vestidos
evita esses lugares lúgubres
do tipo chamado Planalto

e não negocie com estranhos
mercadorias de origem duvidosa
como tochas  cargos  armas  máquinas de bingo
ou outros artifícios
volta pra casa cedo
e observa os abismos


                        ----------xx---------


                                   origem
                                            
                                               pros Bush(s)

  
antes Deus se masturbava entre as pedras
com desejos áridos desertos distantes
que não sabia explicar
e batia com as pontas dos dedos
com violência
e batia
toda sua Imensidão Sozinha

até que se olhou no mundo
e mergulhou
para dar nome aos bois
e tencionou
fazer alguma coisa que fosse a sua cara
metade ego  metade horror 

daí aquela unha encravada
as espinhas  a cegueira  os EUA
a fome  os políticos  as guerras
as transnacionais  o agronegócio
os países centrais  periféricos
a Bomba de Hiroshima
e Deus gozou
cobrindo de verde a terra
(quando nasceu o primeiro mar)

com o que sobrou
fez amores inacabados  doídos
e bombinhas marrons
para jogar no Islã


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                                                perda

                               pro Flavinho


me perdi como se perdem os deuses
com suas fúrias loucas  seus mares em tempestade
quando perdem a mão e invejam
a calma cotidiana  encarneirada dos mortais
que querem sempre os mesmos pastos
os mesmos bois sacrificados
para que sejam deixados em paz

melhor transbordar  desmesurada
arriscar com a hybris  com a cegueira
do que rodar como um carneiro
em torno de mim mesma
num altar ridículo
dando-me aos outros para sacrifício

fodam-se os mortais e seus vícios
e esses deuses acotovelados em suas mesquinharias
quero uma perda sem medidas
sem o estúpido espelho de baixo
uma perda entre iguais
sem altares  mapas  locais
enorme  oceânica  catatônica
com plenitude de perda


                                    ----------xx---------


                                       troia


se te digo que o caminho é outro
me apontas belo deus o percurso
e o trançado dos sentidos se ergarçam
entre meus dedos

esqueceste que eu também tenho poderes
e que ainda existes porque te incenso
no meu templo de dentro

se me ocupo de ti e permito
a tua grande invasão
e se nas entranhas da guerra
me entrego
te sagro com minha carne e altar
é porque assim o decido

sem espada, qual seria o teu discurso
serias pária fora de teus muros
e de que adiantariam suas estratégias
se não soubesses manejá-la 

não forjaste nada fora da espada
embora tenhas um mundo nos teus ptolomáicos mapas
internos
belo deus equivocado
vivente num cavalo oco
atávico

queres minha beleza e véus na tua guerra
para dar sentido
às tuas dívidas com teu pai ególatra
em honra ao teu grande Nada perdido


                                  ----------xx---------


                                   faxina
  

cortei os fios  as chamas  os pavios
joguei fora os deuses  varri a casa
modelei umbigos  uns púbis  uns Rios
com um barro oco ordinário quebradiço

fiz janelas e peles  poros e asas
engrandeci os mitos para parti-los
espatifá-los no espelho  cara a cara

arranquei uns pulsos da navalha
espremi uns cravos  alisei uns livros
e o distante humano que me faltava

depois de tudo feito fugi pelos fundos
quero ficar sozinha
detestaria ter criado um mundo































                                               

quinta-feira, 13 de março de 2014

OS NÓS DE MIM




Estou tão feliz! À beira do ridículo
arde meu peito em brasas de paixão.
Vinte anos de menos, só seria mais jovem.
Nunca, mais amorável.
Já desejei ser outro.
Não desejo mais não.

                                 Adélia Prado



Quando se quer entrar num buraco de rato
de rato você tem que transar

                                               Raul Seixas



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                         A Terceira Face

          Apenas tardiamente compreendi o que seria estar no mundo do Outro, como psicanaliticamente se diz. Concluí, ou melhor, desconcluí, que todas as opiniões acumuladas com ares de absolutismo me davam uma bagagem que não, absolutamente não serviam para nada. O Outro residia também no seu mundo de bagagens, e para alcançá-lo eu deveria jogar minha mala fora. No máximo, sair com a roupa do corpo, já que nua, chamaria a atenção dos passantes.
          Foi o que fiz numa tarde azul e nada melancólica de verão. Entrei num ônibus e resolvi visitar o Invisível. Mas provocar um encontro é realmente uma tarefa árdua. Pode-se tentar falando com os porteiros, com os trocadores, com as mulheres gordas que vão aos supermercados. Este é o primeiro estágio. Depois conversar com os colegas de trabalho, o que também ajuda. Mas o Outro, o verdadeiro Outro é aquele que você gostaria de ver entrar como um vendaval na sua casa, tirando suas coisas do lugar, dando palpite infeliz em tudo, e dizendo, eu faria assim, eu poria de Outro modo. Aí você tropeçaria neste Eu Ameaçador, o varreria de sua casa, e à noite, já encolhida e vivenciando a Sua falta, suspiraria, Ah, que falta Ele me faz!!!
          O que não quer dizer que o Mesmo não sopre acariciador como uma brisa quente, quentíssima de verão. Aquele que balança a cabeça e concorda peremptoriamente com a sua afirmativa, preenchendo-a como um balão novíssimo em folha, que acabou de ganhar o ar. Majestosamente, com o tradicional dedo em riste, protegendo-a daquele Outro ameaçador invisível que está atrás, o Terceiro que discordou de tudo e a empurrou para o abismo do desfazimento. O colo do Mesmo, Alentador, ainda que sub-repticiamente carregue consigo alguns pequenos e afiados alfinetes, para que você não infle demais.
          Mas o Mesmo pode se tornar um chato. Repetir você como um gravador obsoleto. O Mesmo, Massa Moldável Costumaz. Aquele que você encontra na esquina e finge que não vê, mas não adianta. Acenando com seu cartão de ponto diário, enfiando-o na sua cabeça até você escutar o clique, são 4 horas da tarde, aí vem o crespúsculo (que diabo), abrir a porta, lavar a louça, fazer café, ir à padaria. O Mesmo achata o seu nariz numa redoma de vidro, só que você é que está dentro, bicho de zoológico futurista, e ele de fora olhando.
          O Mesmo varia do cínico ao perverso. Quando não é melancólico. Basta ver as famílias dos Mesmos quando ganham as ruas. A procissão dos Mesmos, a profecia dos Mesmos, a profissão dos Mesmos. E você num filme B de terror, com a saída do cinema trancada. A televisão ligada e você ligada no lixo da televisão. O rádio tocando aquela música insuportável e você com preguiça de desligar, só pra não ter que andar até ele. O Mesmo aflora que nem sarna, e você se arrepende até a eternidade por tê-lo convocado. Só que, cristãmente, você o atura.
          De repente, blom, bluft, blum!, você estoura. O Mesmo ganhou um estarrecedor ar de Outro e a atravessou com dez milhões, quinhentos e cinquenta mil e noventa e quatro parafusos, desajustando as porcarias das suas porcas. E você ganha aquele ar estupefato de bezerra desmamada, bate o pé no chão, avermelha-se. O crepúsculo das deusas. A ventania recomeça, o tornado, o mundo gira à sua volta. A faca que corta a pizza na mão do garçom ao lado toma um ar macabro de um machado psicótico. O ketchup espalha-se espalhafatosamente no ar rarefeito: você não pode mais respirar. O Outro cresce, e você tenta ficar do tamanho Dele. Narinas infladas, você cospe As Palavras, O Alcorão irreversível. Sua mala desajeitadamente reaparece sob a mesa. Você a pega e a sacode ferozmente na cara Daquele Infame. Com a sua mágica, vai tirando de dentro dela todo aquele mundo enorme. O Outro decrépito, decresce em sinal de respeito. Cospe mas engole. Bufa, vai embora. E assim que te vira as costas, faz uma Falta Imensa.


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                                               aceitação

Que venham os monstros  os invejosos
os oportunistas  as moscas varejeiras
os supostos coitadinhos do golpe com suas esmolas de vidro
que só pensam em empregar seus filhos
e torturam com pequenos cortes a próxima fodida geração

que venham as peruas louras e alisadas
a misoginia funkeira  as palavras fáceis
o mundo cultural tacanho
é tempo de inclusão
social

que me penetre na carne o senso de injustiça
com seu tecnológico toque global
todos querem o mundo às suas imagens e semelhanças
muitos Deus e poucos risos
nenhum projeto coletivo
menos sonhos ainda

que venham (evocando Mário)
as zabumbas da Lapa e seus conservadorismos
os futuros intelectuais de esquerda
alienados  individualistas
brigando pela primeira fila

que venham todos  meu peito é grande
quase continente  quase berço esplêndido
a minha capacidade de aguentar insônias é imensa
tenho uma caçamba enorme para triturar lixos
e uns tentáculos gigantes
que eu uso como barbantes
para amarrar as estribeiras


                                                  ----------xx---------


                       apropriação
         
                                 pros meus irmãos de criação


o exílio é aqui  ao lado
mas eu nunca saí do país
nem mesmo dessa sala

se eu pudesse dizer
diria que estou cansada
do seu foco  dos seus pecados
que eu recuso e não pago

faz você o seu pó  os seus morros
você que cheire eles todos
e dance a dança da naturalização

não quero ser nada igual
a esta hecatombe de nomes
sem conteúdo
aos novos padrões sem contorno
carnudos

como dançam bem os vazios de eus

 saio pela porta dos fundos
para o mesmo espaço de todos
mesmo caçada de tudo
ainda tenho dois olhares de fogo
MEUS


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                carta ao pintor


Botero:
a tua mulher gorda, a ruiva
que se penteia com leveza e
graça, fugiu com aquele homem
o do bigode fino
daquele quadro que esqueci o nome
mas era belo e tão gordo e tão peludo
um colombiano das Américas
e estava nu, como ela

cansada da plateia, dos curiosos
convidou-o a sentar num desses “óleo sobre tela”
e beber um café preto, latino

após se fartarem das naturezas-mortas com frutas
vestiram-se
e fugiram pelos estreitos telhados de Medelín 

agora ela é sua musa, sua monalisa gorda e despreocupada
que come entre os lençóis
ambos usam um anel no dedo da mão esquerda
após o nascimento dos seus 5 filhos
e não querem voltar, e pediram
para vos prevenir
pintor
que a criação do artista
se libertou 


                                        ----------xx---------


                                              cio 

cotidiano sem ouro  sem especiarias
numa casquinha de nós doentes
convocando ao diminutivo
um Rio correndo sem parar

que cio é este invertido
que faz implodir sem um pio
que trepa com tanatos ao sol
e avança pelos fundos  pelas bordas
e atravessa pelos furos  pelas falhas
realizando desejos obscuros
disparando em corpos parados
assassinando os herdeiros da cena


                           ----------xx---------


                        confraria 

o poeta arria as calças
e balança
os críticos dizem
como é grande

a poetisa põe a saia
os sapatos
organiza os espelhos
(criticam os mesmos
com repulsa)

pra depois...

“não sei nada sobre isso
sou florzinha”
diz a poetisa
criticamente enrabada


         ----------xx---------


doer


cruzo a tarde da tua falta
pelos cotovelos o poema aguarda
perder o nome  a memória  a fala
rodar-me em cruz  desatar-me em portas
ver de longe o umbigo boiando no morto
caminhando nos roxos vermelhos do abandono
onde os concretos são os prédios
e os fatos tirados da dor
como um aborto

ah  os trilhos  os seios que emanam seios
são meus os contornos
e não inventados
que ficam reflexos  retidos  emoldurados

são anos  assaltos
entre noites  pulos e fatos
difíceis de ventre
pesados

e estar sempre em tardes tentando saltar tardes
puxando os fios  enrodilhando os braços
para embalar-me

e esse doer no inconsolável
como um sol inchado de socos
freando as vísceras  o corpo
e ficar-me
sem digestão
amassando muros  passantes  meses
entre as mãos

sem vê-lo ir
vendo-o sempre indo

tentando guardar-me no que te existia
amarrando-me no que me deixaste
afundando-me cada vez mais entre poços
e nãos


                                        ----------xx---------


            felação

teu contorno tão gigante
te chupo os cabos  as penínsulas
mas cheira à cópia malfeita
de mundo já conhecidos

me faculta o simplesinho
repito o que já foi traçado
hoje estou mais para a terra
e não há membro rígido que resista
a tamanha regressão

quebro-me, sou chão do agreste
me faltam o líquido  o bar  os cremes
o que se pensa que é imprescindível
para maquiar esta inconsolação

e teu corpo continua grande
mas completamente analfabeto
dos meus pontos táticos  dos meus espaços líricos
que língua nenhuma alcança
em que pássaro nenhum se aventura
sem se transformar


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   geração
                                                                                            
                           pro André Luiz Pinto

   
pior do que unhas arrancadas sob tortura
ó terra avanças contra mim
com teu cheiro de mofo  tuas lembranças
do 1º. de abril

embora sejamos as duas
igualmente colonizadoras
queremos  queremos cabeças
tu a de todos  eu a tua

cuspo na tua grandeza forjada
pisoteio todo o teu azul
e assim me mato
fuzilada
como um outro lado
que se expõe
de um rosto que estava guardado
por um muro
blindado
esperando vítimas

arranco  arranco e mostro
toda a minha face chaguenta
a pior
carente  desempregada  a escória
que dorme pra nada e acorda no meio
de um pesadelo

nunca acaba  nunca acaba
este asfalto  esta calçada
pra onde levam
meus ossos  minha carcaça

sobrei em meio a escombros e refrigerantes
entre jovens que erotizam demais
e velhos-jovens que mentem o tempo todo
sobre como foram coitadinhos
ao te combaterem

ó terra como nos enrabam bem
esses nojentos
como nos mantêm acorrentados
a um Prometeu às avessas
roubando nossa humanidade
usurpando com seus filhos nossos espaços
Rios onde afogadas e afogados
como eu
se ressentem


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                              humanidade

                                pro Fernando


arrepender-se
e montar o sol pelo avesso
e ver somente o negro dos interstícios
e usar anéis cruéis que não são nossos
nos ossos

só os monstros devem arrepender-se
(embora não o façam)
os que matam cravados no alvo
com um sorriso nos lábios
um ou muitos
numerariamente

para nós que apenas estapeamos mosquitos
e nos incomodamos pedestremente pelos famintos
basta uma pequena ingênua culpa mensal
e a consciência de que
somos gente afinal


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              intervalo


entre o gênio e o cão
existe um corpo de desmedidas doces
que foge do verbo morto que habita o livro dos coitados
que recusa a mordida cariada dos que adiam
para o ontem
o que deveria ser humano

a simetria é um equívoco ocidental
que não admite cacos ou outras tessituras
como a pele desfeita, os nós em trama
as veias maleáveis
e até mesmo o fogo:
se for só escrito, o pulso se perde
corpos pedem mais que desolação ou fitas métricas

corpos pedem corpos
enredados nas teias das carnes
plantadas no trigo das horas
que brotam
e florescem

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                                              memórias

já nasci velha  enrugada
quando todos viviam a rodo
eu me ajoelhava e vaticinava
a poesia mata

enquanto era lambida por uma labareda abstrata
a concretude da vida me estapeava
profissão:  o corvo  o casamento  a casa
mãe  irmãos  facções  tacadas
as involuções que obrigavam
a cair de quatro  a limpar com a língua
o excesso da fala

e eu me dispunha até os ossos
montada  seduzida  maltratada
a roer os restos  as migalhas
(mas continuar sendo)
eu ia esmigalhada
(cinderela coitada)
mas seguia sendo
  
fruta venérea do tempo
silenciosamente consolidando
(mesmo forjando rugas)
mudando  sendo
uma fantástica  frondosa 
feminina  maiúscula
robusta pessoa
inteira

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                         poema colonizado 

o mar me arrasta com sua língua
nesta piazzolla tarde rasgada
ando como um trapo  saltimbanca
bahia abandonada por piratas

o que sobrou ficou pelas areias
meus ossos  minha ética  minhas táticas
os elementos inúteis  irremovíveis  duros
das minhas máscaras

lambida pelo sol  aberta pela casca
exponho meus lábios  minha fala
entrego o ouro ao bandido
o vil (e velho) conhecido metal
da minha falta

o mar me entranha pelos dedos
me empurrando até as costas
e eu subo e navego os medos
dessa abandonada guanabara

e sinto desejos franceses de ilhas
seus mastros  suas velas cansadas
seus trapézios de turistas
fincada pelo outro
no asfalto
por corpos  cocos  velas  arcabuzes  maresias
nessa cidade sem dias
recolho as velas do ventre
arrasada  invadida
desmoronada
pela carioca vida vazia


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           poema com outro dentro


lixando até ficar tão fino
peneirando para ficar tão claro

e virar pelo avesso os seus
os meus  até que saia o sumo
e te beber embriagada

e pôr no lugar o denso removido
os tropeços  as pancadas

e costurar com as unhas
o bom  o simples  o acaso

e me te beber embriagada
do grande  potente  úmido
meus saídos  contigo
trocados


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                   poema inútil

guardo porque sinto
entranhas sinuosas que fomento
em palavras

e porque odeio metáforas
rasgos  gritos  delírios
arranco com a unha
o cotidiano que vai pequeno
caminhando com sua lenta pata

e explicito
que é dor sim  que é dor não
o lugar em que me equilibro
nesse cume do buraco
em que respiro
e me planto:
para ser um livro  um lembrete  um pão

em farelo puída
me publico
recuso-me à utilidade
e me guardo porque cinto
explosivo desconfio
das explosões vãs


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poeuminha infantil
                                   
                            pro Flavinho
                            pra Moniquinha


A minha dor selvagem mora aqui  perto da janela
é feia e torta, tem varizes
daqui eu escuto a tosse dela

não há xarope que faça passar
nem o pique, nem o esconde
ela roda de sol a sol
e sua

a minha dor é boba
não é chegada a banho
de loja
não gosta de chope  nem de futebol
é cega de direção
é burra de conclusão

é uma dor com soluços
gagueja com matemática
e é quase física

Um dia tentei enjaular
a minha dor selvagem
e ela quase morreu
montou numa tempestade
e queria fugir do mundo
e eu tive um trabalhão
pra trazer ela de volta

é que eu não entendia
que é uma dor sentadinha
se conforma com pouco:
basta um pouco de cuidado
basta um pouco de estrago

brigamos um dia, ela e eu
trocamos xingamentos  mazelas
ela virou vizinha
(uma dor assim
não se trata como velha!)

até que um dia eu cansei
e fiz ela virar vestido
pano de prato  esfregão

tomara que ela não caiba mais em mim
tomara que eu não caiba mais nela


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                            profissão

                          pro José Maria


dar tempo ao tempo
mergulhar a tripa na confissão da paciência
e rolar escada abaixo enquanto se paga aos santos
horas que foram devotamente roubadas
de mim

imersa na inércia que unguento na alma
grito cheia de cacos  de exclamações
pelo menos não foi morna
(adiciono aqui um consolo cheio de cheiros)
a vida  vidinha de mais-valia
mais-valeu
mesmo retalhada  garroteada  roubada
com suas insônias  seus incensos vãos
e mergulhos fundos numa prostituição sem preço
em seus trabalhos sem valor
pelo pão


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                        prostituição

                        pro Leminski


pagar pra ver
não é nada raro
mas gozar com a vida
custa caro


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reciclagem


a realidade me chama
eu corro  me escondo nos cantinhos
dos sonhos que eu queria ter

toca o celular como sinos
recebo contas a pagar atrasadas
como meu caminho

se eu pudesse desligaria o mundo
pediria ao Boss para me esquecer
mas Ele tem dentes de triturar profundo
e uma leitura mais rápida
um bote mais ativo

mando meu corpo sem jeito pra Ele
come rápido, eu digo, tritura. Se for
um  capricho (penso) logo me abandona

mas o que sobra é tão pouco que não dá poema
só um resto de lixo que o Neoliberalismo empurra
reaproveita e joga num tubo estreito e escuro
para melhor me espremer


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                         sábado


o gosto dos quase táteis agostos
e as cenas das quase perdas
e o choro no violoncelo do corpo
entalhado no arco de sempre

aqui não há inverno
só o medo
que chova ossos  que o pulso arrebente
e não reste púbis sobre púbis
só os cacos

há que ser artista de mosaicos
colar as crises  as facadas  os abandonos
descascar um país entre os dentes
e aguentar os nomes de filha  aguentar
até ser mulher hercúlea  deusa pobre
de poderes

e inventar naturezas vivas  mundos sobre as costas
e um amor tão falso como querem os homens
que aceite tudo e que não dê trabalho

e tecer palimpsestos rasgados
à noite, afastando os ausentes
e inscrever na pele que há vida
há vida
antes da morte  dos finais  dos cortes
misturada à areia do cotidiano
por um triz
há vida agarrada nos poros


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                            tecelagem

extrair o ouro bruto desse cotidiano
e recusar uma dívida atávica  oca em oceanos
até chegar ao extremo desoriente
que é este Rio cuspido e escarrado
a cara do Pai

esta terra descoberta e reduzida
a pó  picaretagem  maus motoristas
com especialistas e especiarias duvidosas

e mesmo assim tentar
com tentáculos  óculos  pesadelos
bordar uma estrada no plano
colar um farol na testa
num trabalho paciente
de Penélope
se desmisturando


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                          visita

                          pro Nilton


A casa do outro tem formas de ouro
a ficção velada  do desconhecido
onde só posso ver pontas e quinas
contornos de pó  gestos crespos  madeiras lisas

não fui eu que comprei  não fui eu que escolhi
e posso estar de visita
entrar no outro e voltar pra mim

daqui sinto o cheiro de sândalo
o rasgado vermelho de estar
no meu oriente olhando-me
de lado
espreitando o que posso
de seus estados

o outro meu trampolim
o nada gasto  o com contornos
o que me costura no claro opaco

amar o outro é como amar os gatos
mas os gordos  complacentes  macios
gatos
os que negam suas classes felinas
por serem mais inteligentes

os que não são inferno  nem acaso empalhado
os que abrem brechas no tempo
e trazem a pele para alisar
e que se aquecem e ronronam
sob nossos dedos