4ª. Feira
Não Sr. Professor, não entendi. Não
estava prestando a devida atenção. Meu olho direito colou na retina plástica de
seus olhos castanhos. O outro sentiu um pedaço de seu tórax à mostra entre os
botões da camisa. Enquanto minha mão alisava a sua verruga preferida, eu
esqueci o nome do tal poeta.
Não, não acho. Não acho que esta
história entre professor e aluna seja irrelevante. Minha calcinha fica molhada
quando o Sr. cita os filósofos.
Baixaria? Comer o pão que o caralho
do presidente e dos empresários amassaram, o Sr. acha normal. Passar o dia sem
poder comprar um copo de refrigerante num calor de 40º, babar as vidraças das
livrarias que nem cão de Pavlov, cair estonteada diante do arsenal de músicos
que este país tem e não poder comprar um mísero CD são coisas relevantes?
O quê? Vou, vou com prazer. Mas antes
de ir, te dou este papel, queridinho, com o meu número de telefone. Posso fazer
coisas incríveis com a língua, trabalhá-la, encaixar certinho o teu pronome
pessoal sujeito à minha predicativa vontade. Mexo nas frases de um jeito
ordinário e catastrófico. O Sr. vai gozar montanhas de pontuações e vai gostar
muito, podendo assim corrigir o que há de errado na minha comuníssima e banal
humanidade de mulher tropeçada de povo.
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12 de junho
Amô da minha vida, eu vi teu anúncio
no jornal. Também te amo bem, tu não precisava exagerar, aquelas letras tão
grande, cheia de coraçãozinhu. Mermo depois daquele dia que você me bateu e me
chamou de escrota e eu levei uns pontos. Porque o amor é assim mermo, né, às
vezes a gente se estranha.
Cê me chamava de gostosa antes daquela puta entrar na história. Lembra? Quando a gente se conheceu, eu
tava de vestido colado branco transparente. Salto plataforma (era moda) e
brinco de estrasse. Você foi logo me agarrando e dizendo que mulher tua não
usava batom tão vermelho, e me fez tirar, porra, tu me tirou o batom com a
manga da camisa, enquanto me apertava, tanto que eu não podia respirar. Que
homem! Ali mesmo eu caí, pretinho, na tua. Desde deste dia.
Faz mais de 6 meses que eu não te
vejo, ai meu Deus, já tava com desgosto. Ontem fui à igreja (eu sei que o dia
de ir era hoje, mas não ia dar tempo, fiquei dando uma força pra D. Rosa e pro
Seu Manueu, tomando conta do Uoshington José, que é pra eles saírem. É um
menino tão bonzinho, fala sempre de você!).
Mas agora eu sei, se tu botou o
anúncio, é porque me quer de volta. E eu vou benzinho, pur isso tô escrevendo
esse bilhete. Seu Manueu vai passar aí mais tarde, pra te entregar. (Fala
direito com ele, tá?)
Me espera Mozinho, que eu vou com tudo
em cima. Eu perdoo, eu perdoo tudo, eu sei que foi macumba que aquela zinha fez
pra te prender. Mas o meu santo é mais forte! E depois, um amô assim, nem
precisa de viagra!
Da tua Vavaninha
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turismo
O único incidente que quase,
sublinho, quaaaase estragou a minha estadia nesta terra maravilhosa e antiga
foi o pulo que um homem, um animal a bem da verdade, deu sobre mim, arfando e
grunhindo, estragando, melhor dizendo, estropiando essa língua tão bela,
encostando a dele nojenta no meu pescoço, tentando agarrar o meu ombro com uma
das mãos.
Eu lhe ofereci o meu colar raro da
Índia, de âmbar, cariiiíssimo, os olhos da cara, aquele com uma pequena deusa
cheia de braços, mas ele continuou sem entender que eu não iria resistir porque
sou uma mulher muito frágil e um tantinho doente dos nervos, que morria de
cansaço só de pensar nas lojas que teria que entrar, que ele podia roubar as
minhas joias, a minha pulseira de madrepérola com brilhantes falsos ou os meus
brincos banhados a ouro, tanto fazia. Assim tive que tomar uma atitude drástica,
tirei tudo e, num gesto heroico, coloquei dentro de suas mãos e as fechei como
se dissesse tudo bem pode levar, mas ele não se contentou, queria também o meu
vestido, aquele que comprei à Paris, na Avenue..., lembra, numa liquidação de fim
de outono. Foi o cúmulo da brutalidade querer desse modo aquele tecido de voal
forrado com aquele crepe bem cortado em tom pálido, quase rosa-chá!
Não vi mais nada e bati, tirei o meu
sapato e bati bem batidinho, aquele que era uma doçura de escarpanzinho, aquele
que comprei naquele dia mesmo, nem te contei, enquanto você foi ao toalete,
naquele passeio inesquecível rumo à civilização. Só assim o monstro me largou,
quando o saltinho delicado lhe perfurou a têmpora direita e saltou um sangue
fininho, lembrei daquelas sianinhas turcas bem vermelhinhas que enfeitavam
aquele véu que eu desejei tanto daquela mulher gorda e feia e desajeitada que
não ficava nada bem com ele e mesmo assim não quis me vender, e eu tive,
imagine, que puxar com força e quase rasgou, que estrago, aquela sem eira nem
beira que andava pensando que ainda estava na sua terra de pagãos. Foi a mesma
raiva que eu tive do homem nojento, a da mulher gorda, gente igual, sem gosto.
Ele ficou lá estirado e meio roxo,
parecia um sapo mal-amado, banhudo, essa ralé é sem graça, não se cuida, logo
hoje em dia que é possível fazer tantas dietas, colocar um botox ou tirar uma
costelinha para delinear uma cinturinha que Deus poderia ter nos dado, ou mesmo
uma simples lipoaspiração!
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reencontro
Estava num desses dias em que o céu
parecia despencar sobre a cabeça. Caminhou um pouco, molhando os pés nas poças
d’água, até esbarrar num corpo duro que também transitava. Pela força do
tranco, parecia uma barra de ferro. É. Uma barra de ferro. Mas era uma
moça, que o olhou baixo, surpresa, com seus olhos oblíquos. Que mistério.
Ele começou a andar atrás daquele corpo fino e enrolado num quimono oriental
vermelho. Aonde iremos.
Entrou e saiu de becos. A cidade
sumiu. O ambiente minava uma fumaça de gelo seco. Que palco. O próximo
cenário era quase um deserto: uns cacos de vidro, umas gotas de sangue seco, o
chão de pé de moleque, paredes altas de sobrados antigos. Uma mecha lisa e
preta passou rápida e acompanhou o ar. Quase.
Dobrando a próxima esquina, um beco
sem saída. É agora. Os olhos oblíquos negros contrastavam com a pele
branca. A mãozinha foi crescendo crescendo e gritou. Me chamo Capitu!
Um tabefe monstruoso estalou no ar. A
boca aberta, os dentes enormes, a barbatana pontiaguda, os pelos eriçados.
Bentinho sentiu os dois metros a mais, as garras grandes atravessando-lhe as
pernas, o peito, a pele, os braços. Ah, a liberdade, pensou, enquanto
fechava os olhos e dançava.
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