segunda-feira, 17 de março de 2014

AS PROFISSÕES em dois dedos de prosa



                                                               4ª. Feira


          Não Sr. Professor, não entendi. Não estava prestando a devida atenção. Meu olho direito colou na retina plástica de seus olhos castanhos. O outro sentiu um pedaço de seu tórax à mostra entre os botões da camisa. Enquanto minha mão alisava a sua verruga preferida, eu esqueci o nome do tal poeta.
          Não, não acho. Não acho que esta história entre professor e aluna seja irrelevante. Minha calcinha fica molhada quando o Sr. cita os filósofos.
          Baixaria? Comer o pão que o caralho do presidente e dos empresários amassaram, o Sr. acha normal. Passar o dia sem poder comprar um copo de refrigerante num calor de 40º, babar as vidraças das livrarias que nem cão de Pavlov, cair estonteada diante do arsenal de músicos que este país tem e não poder comprar um mísero CD são coisas relevantes?
          O quê? Vou, vou com prazer. Mas antes de ir, te dou este papel, queridinho, com o meu número de telefone. Posso fazer coisas incríveis com a língua, trabalhá-la, encaixar certinho o teu pronome pessoal sujeito à minha predicativa vontade. Mexo nas frases de um jeito ordinário e catastrófico. O Sr. vai gozar montanhas de pontuações e vai gostar muito, podendo assim corrigir o que há de errado na minha comuníssima e banal humanidade de mulher tropeçada de povo.


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                                                12 de junho


          Amô da minha vida, eu vi teu anúncio no jornal. Também te amo bem, tu não precisava exagerar, aquelas letras tão grande, cheia de coraçãozinhu. Mermo depois daquele dia que você me bateu e me chamou de escrota e eu levei uns pontos. Porque o amor é assim mermo, né, às vezes a gente se estranha.
           Cê me chamava de gostosa antes daquela puta entrar na história. Lembra? Quando a gente se conheceu, eu tava de vestido colado branco transparente. Salto plataforma (era moda) e brinco de estrasse. Você foi logo me agarrando e dizendo que mulher tua não usava batom tão vermelho, e me fez tirar, porra, tu me tirou o batom com a manga da camisa, enquanto me apertava, tanto que eu não podia respirar. Que homem! Ali mesmo eu caí, pretinho, na tua. Desde deste dia.
          Faz mais de 6 meses que eu não te vejo, ai meu Deus, já tava com desgosto. Ontem fui à igreja (eu sei que o dia de ir era hoje, mas não ia dar tempo, fiquei dando uma força pra D. Rosa e pro Seu Manueu, tomando conta do Uoshington José, que é pra eles saírem. É um menino tão bonzinho, fala sempre de você!).
          Mas agora eu sei, se tu botou o anúncio, é porque me quer de volta. E eu vou benzinho, pur isso tô escrevendo esse bilhete. Seu Manueu vai passar aí mais tarde, pra te entregar. (Fala direito com ele, tá?)
         Me espera Mozinho, que eu vou com tudo em cima. Eu perdoo, eu perdoo tudo, eu sei que foi macumba que aquela zinha fez pra te prender. Mas o meu santo é mais forte! E depois, um amô assim, nem precisa de viagra!
           
                                                Da tua Vavaninha


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                                                   turismo


          O único incidente que quase, sublinho, quaaaase estragou a minha estadia nesta terra maravilhosa e antiga foi o pulo que um homem, um animal a bem da verdade, deu sobre mim, arfando e grunhindo, estragando, melhor dizendo, estropiando essa língua tão bela, encostando a dele nojenta no meu pescoço, tentando agarrar o meu ombro com uma das mãos.
          Eu lhe ofereci o meu colar raro da Índia, de âmbar, cariiiíssimo, os olhos da cara, aquele com uma pequena deusa cheia de braços, mas ele continuou sem entender que eu não iria resistir porque sou uma mulher muito frágil e um tantinho doente dos nervos, que morria de cansaço só de pensar nas lojas que teria que entrar, que ele podia roubar as minhas joias, a minha pulseira de madrepérola com brilhantes falsos ou os meus brincos banhados a ouro, tanto fazia. Assim tive que tomar uma atitude drástica, tirei tudo e, num gesto heroico, coloquei dentro de suas mãos e as fechei como se dissesse tudo bem pode levar, mas ele não se contentou, queria também o meu vestido, aquele que comprei à Paris, na Avenue..., lembra, numa liquidação de fim de outono. Foi o cúmulo da brutalidade querer desse modo aquele tecido de voal forrado com aquele crepe bem cortado em tom pálido, quase rosa-chá!
         Não vi mais nada e bati, tirei o meu sapato e bati bem batidinho, aquele que era uma doçura de escarpanzinho, aquele que comprei naquele dia mesmo, nem te contei, enquanto você foi ao toalete, naquele passeio inesquecível rumo à civilização. Só assim o monstro me largou, quando o saltinho delicado lhe perfurou a têmpora direita e saltou um sangue fininho, lembrei daquelas sianinhas turcas bem vermelhinhas que enfeitavam aquele véu que eu desejei tanto daquela mulher gorda e feia e desajeitada que não ficava nada bem com ele e mesmo assim não quis me vender, e eu tive, imagine, que puxar com força e quase rasgou, que estrago, aquela sem eira nem beira que andava pensando que ainda estava na sua terra de pagãos. Foi a mesma raiva que eu tive do homem nojento, a da mulher gorda, gente igual, sem gosto.
         Ele ficou lá estirado e meio roxo, parecia um sapo mal-amado, banhudo, essa ralé é sem graça, não se cuida, logo hoje em dia que é possível fazer tantas dietas, colocar um botox ou tirar uma costelinha para delinear uma cinturinha que Deus poderia ter nos dado, ou mesmo uma simples lipoaspiração!


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                                              reencontro


          Estava num desses dias em que o céu parecia despencar sobre a cabeça. Caminhou um pouco, molhando os pés nas poças d’água, até esbarrar num corpo duro que também transitava. Pela força do tranco, parecia uma barra de ferro. É. Uma barra de ferro. Mas era uma moça, que o olhou baixo, surpresa, com seus olhos oblíquos. Que mistério. Ele começou a andar atrás daquele corpo fino e enrolado num quimono oriental vermelho. Aonde iremos.
          Entrou e saiu de becos. A cidade sumiu. O ambiente minava uma fumaça de gelo seco. Que palco. O próximo cenário era quase um deserto: uns cacos de vidro, umas gotas de sangue seco, o chão de pé de moleque, paredes altas de sobrados antigos. Uma mecha lisa e preta passou rápida e acompanhou o ar. Quase.
          Dobrando a próxima esquina, um beco sem saída. É agora. Os olhos oblíquos negros contrastavam com a pele branca. A mãozinha foi crescendo crescendo e gritou. Me chamo Capitu!
          Um tabefe monstruoso estalou no ar. A boca aberta, os dentes enormes, a barbatana pontiaguda, os pelos eriçados. Bentinho sentiu os dois metros a mais, as garras grandes atravessando-lhe as pernas, o peito, a pele, os braços. Ah, a liberdade, pensou, enquanto fechava os olhos e dançava.     














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