sexta-feira, 14 de março de 2014

SOBRE OS DEUSES



                      Mais vale um toma do que dois te darei.  
                                                               
                                                            Sancho Pança                                    

                                         pro Uly


                                                                
                            alvíssaras

antes tudo era perfeito
eras um deus irremovível
quase monumento  quase labirinto

intacto em músculos certos
plantado no jardim do inquestionável
eras silêncio
dentro de meu pátio interno

mas deuses também se esgarçam
corroídos pelo tempo
e são castigados por suas ações
ou pela falta delas

e porque deuses são nascidos de coxas
cuspidos flechados abandonados violentados
e não passam de Ideias
tão substituíveis por seu iguais
te envio por Mercúrio os bons augúrios
que tive
de que destituído não serás mais deus
por aqui
           durante eras  


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                                              capetalismo
                               
                                             termo do poeta Gentileza


milagres são para deuses e santos
para os que detêm o poder  para os que olham por cima
numa reta fria abstrata
traçada desde o berço  sobrevoada de helicóptero ou asas
até a áfrica  até o oriente  até o indecente
do abandono

aos humanos resta a porta dos fundos
os planos sem saúde  a coceira  os crediários  a alergia
os bons ventos  os maus momentos
o parcelamento
da fé  do afeto  da alma

eu sou uma das inadimplentes
devendo uma grande dorzinha
uma entranhada fome inapetente
uma estranha frigidez insaciável de bens
uma sede de maravilhas
  
quando aperto a mão de um deus
ou quando um santo me pede um boquete
em troca de uma vaga no mundo
um inamerceável afago  um parco salário
sonho com um exorcista
que me salve de algum milagre


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                                cenário


todo vísceras  todo carne
um deus passeia sobre os arames

toca cordas densas  toca o duro ferro dos altares
e dança leve  mastigando
sua desamparada condição de deus

um ator moreno entre o através
da fechadura
onde um olho esticado se ajoelha
e se apieda
enquanto cola cacos e vive
de falsos mosaicos
e estende o chapéu e trama
entreaberta  entre atos
se despir
para o deus


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                          concepção

                                                                                         

hoje os monstros acordaram assanhados
o Hades está em festa
e as Erínias estão gritando vem vem vem
Não vou.

estou cheia destas bestas enlameadas que se arrastam com farrapos
elas que vão ser trágicas na puta que pariu

tenho em mim encravada uma grande pedra azul
meu ventre está sólido e iluminado
e conduzo o tempo nas mãos porque assim me foi dado

me banho para os deuses
para ser mais precisa
me purifico com artemísia e bálsamos
e tenho a pele lisa e amaciada
para ir ter apenas com um deus
que foi prenunciado pelos oráculos
conceberemos um Rio em poucas horas
de entre as suas coxas saltarão as águas
que eu chamarei (em êxtase) Janeiro


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                                        desejos 

deuses pediram olimpos  céus com zeus  colchões macios
pastilhas para a garganta  filhas no cio
ninguém contou a eles
que deuses não moram mais
porque estão inadimplentes

devem aqui na terra
pilhas de adorações
que receberam adiantado
e não saldaram

os choros humanos  os joelhos esfacelados
um Rio depauperado
seus círios
a queima de dias áridos
os tiros
mas nem assim se coçaram

a cidade está doente
míope  degradada
por contar com deuses dormentes

deuses não moram mais
deixaram seus leitos imortais
seus incestos  cartéis  pedofilias  serpentes
intrigas de última hora
para viver entre as gentes

deuses não moram mais
e tropeça-se agora neles
amontoado de animais
sem políticas oficiais
um problema social a mais
a ser resolvido por nós


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                  destinação


nesse dia bruto  empalhado
desejo é tudo o que não pode ser

deve haver leite nas pedras
deve ter um jeito de espremer
essa tarde até que ela confesse
algum brilho escondido

o melhor é enfiar as pernas ao comprido
suplicar aos deuses  chamando-os à razão
beijando seus auspícios
chupá-los do falo até que se ergam
e nos destinem
o mundo


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                              deuses


deuses têm peles desbotadas
e sobem degrau por degrau
por nossas costas

conspiram segredinhos  afiam as unhas
e cravam em nós
seus gostos pelo lixo

um cargo  uma mordida  uma mortalha
deuses são tão críticos
saracoteiam suas falas
e tramam publicações

deuses nos sabem mais 
por isso
saudemos os deuses
pois sem eles
o que seria de nós
sem títulos  diluídos
esparsos por linhas e folhas
novos velhos escritores
ignorados ocupando
os rascunhos dos nossos postos

adendo: mas por que temer os deuses
se eles sempre existiram?


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           nosso olimpo   
              
deuses legam
deixam isto  deixam aquilo
tudo o que fazem
são grandes feitos
de um barro escolhido a dedo
por isso protegem
com suas mãos em concha
seus preciosos herdados metais

já as deusas
têm mania de roupas suadas
e passam longas os dias
e ajoelham por nada
e por serem de costelas
pensam sempre na segunda:
tecer semanas de cabo a rabo
para que propiciem falos
aos deuses
uma boa vigília  seus legados
e bom trabalho


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          o bêbado e seu companheiro 

você que se faça de rogado
que eu hoje não posso
comigo e com meu fígado

estou duro como um rochedo
bebi ontem meu passado inteiro
de um só trago

promete, Prometeu
parar de roubar
e ficar por aí dando à toa
o que não é pro nosso bico

olha essa gente lá embaixo
distribuindo santinhos
querendo ocupar seu posto
olha no que dá ser deus
e ficar desempregado

cuidado com esses abutres
e com esses deuses inteiros
que caminham bem-vestidos
evita esses lugares lúgubres
do tipo chamado Planalto

e não negocie com estranhos
mercadorias de origem duvidosa
como tochas  cargos  armas  máquinas de bingo
ou outros artifícios
volta pra casa cedo
e observa os abismos


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                                   origem
                                            
                                               pros Bush(s)

  
antes Deus se masturbava entre as pedras
com desejos áridos desertos distantes
que não sabia explicar
e batia com as pontas dos dedos
com violência
e batia
toda sua Imensidão Sozinha

até que se olhou no mundo
e mergulhou
para dar nome aos bois
e tencionou
fazer alguma coisa que fosse a sua cara
metade ego  metade horror 

daí aquela unha encravada
as espinhas  a cegueira  os EUA
a fome  os políticos  as guerras
as transnacionais  o agronegócio
os países centrais  periféricos
a Bomba de Hiroshima
e Deus gozou
cobrindo de verde a terra
(quando nasceu o primeiro mar)

com o que sobrou
fez amores inacabados  doídos
e bombinhas marrons
para jogar no Islã


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                                                perda

                               pro Flavinho


me perdi como se perdem os deuses
com suas fúrias loucas  seus mares em tempestade
quando perdem a mão e invejam
a calma cotidiana  encarneirada dos mortais
que querem sempre os mesmos pastos
os mesmos bois sacrificados
para que sejam deixados em paz

melhor transbordar  desmesurada
arriscar com a hybris  com a cegueira
do que rodar como um carneiro
em torno de mim mesma
num altar ridículo
dando-me aos outros para sacrifício

fodam-se os mortais e seus vícios
e esses deuses acotovelados em suas mesquinharias
quero uma perda sem medidas
sem o estúpido espelho de baixo
uma perda entre iguais
sem altares  mapas  locais
enorme  oceânica  catatônica
com plenitude de perda


                                    ----------xx---------


                                       troia


se te digo que o caminho é outro
me apontas belo deus o percurso
e o trançado dos sentidos se ergarçam
entre meus dedos

esqueceste que eu também tenho poderes
e que ainda existes porque te incenso
no meu templo de dentro

se me ocupo de ti e permito
a tua grande invasão
e se nas entranhas da guerra
me entrego
te sagro com minha carne e altar
é porque assim o decido

sem espada, qual seria o teu discurso
serias pária fora de teus muros
e de que adiantariam suas estratégias
se não soubesses manejá-la 

não forjaste nada fora da espada
embora tenhas um mundo nos teus ptolomáicos mapas
internos
belo deus equivocado
vivente num cavalo oco
atávico

queres minha beleza e véus na tua guerra
para dar sentido
às tuas dívidas com teu pai ególatra
em honra ao teu grande Nada perdido


                                  ----------xx---------


                                   faxina
  

cortei os fios  as chamas  os pavios
joguei fora os deuses  varri a casa
modelei umbigos  uns púbis  uns Rios
com um barro oco ordinário quebradiço

fiz janelas e peles  poros e asas
engrandeci os mitos para parti-los
espatifá-los no espelho  cara a cara

arranquei uns pulsos da navalha
espremi uns cravos  alisei uns livros
e o distante humano que me faltava

depois de tudo feito fugi pelos fundos
quero ficar sozinha
detestaria ter criado um mundo































                                               

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