pra Vera
amizade e gratidão
pro Júlio e pro Ronald
que acreditaram
(in)vocação
pro Mário Quintana
poema musicado por Vera de Andrade
poema musicado por Vera de Andrade
a música me cai nos ossos nos músculos
Vinde a mim ó bruxos com seus agudos
atravessada desses sóis mesmo no escuro
ajoelho e busco
lambê-los
quando tenho medo
arranco ritmos dos nervos
jazzo em bemol
sou amada – não sou – sou amad
PAUSA
que importa o meu inferno
se sou mínima ou cortada ao meio
se me sobro num outro compasso
as notas me escorrerão à revelia do meu concerto
como boca como
tudo que não tenho
pelos cantos
portanto
Levai-me ó bruxos para onde eu deveria ter sido
para o antes do mundo
para vossas claves
vossos feitiços vossas armaduras
ou para o total esquecimento----------xx---------
crescendo
este espaço cheira a solidão sem lume
sem goles de chá manhãs estrangeiras
dedos
quentes
num exílio sem papéis
sem fósforos
emparedado de espaços
grades de grafites
sem uso
mas flui das pedras um começo úmido de signos
mas brota dos tacos um suor
macio de limo
humano
coberta verde de entrelaçado vime
de falos
atapetado
este espaço beira o leite do agora
que desmancha doce
interno e manso
na flauta coalhada
que me entras
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à deriva
pro Fagner
procuro outro mar outra baía
aquele verde que te traduzia
depois me lembro que limpidez
é utopia
sei que as mãos não seguram nada
a beleza faz parte das águas
fica só no olhar
na memória
da nossa história
e você é pura espuma
pela frente
a perda se mistura ao verde
ausente
por aqui não há água nenhuma
nem veleiros
nem deslizes
nem erros
como se atraca no nada?
tanta corda
tanto laço
mas nesse barco
como faço
se continuo sozinha
e no fim do dia
o que me resta para navegar
esse mar com fim
e a sua paisagem sem Deus
desesperadamente verde
presa na minha retina
alice
vou
tocando crua estas chaves
abrindo-me
nos ossos nos espelhos
pelas
ruas vejo olhos e nomes
abandonados
e piolhos neste tempo
nada
a declarar o Rio não se esconde
das
pedradas dos tiros dos andares
do
futuro caranguejo
eleitos
com beijos sujos
presos
às grades e aos músculos
nus
que flutuam sem pintura
com
as caras coladas e as pernas na lua
pisadas
na bunda e eu
na
pele nos buracos nas fechaduras
nas
camas nas paisagens nas costuras
tentando
ver
ausência
pro Djavan
Aquele que não vem
vai chover sobre a sala
e eu vou plantar papéis
guerrilhas retaguardas
e caminhar afogada
em mim
calada
nesta sala
que ninguém vai ver
Aquele que não vem
me vai na correnteza
salgada
desta sala
e eu vou fazer crescer
uma crença um desgosto
um sol desfeito por dentro
até me perder
no seu rosto
que eu não vou ver
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blues
pro
Raulzito
estiquei os braços pro dia
e disse pra ele
só um instante
não acabei ainda
este blues
e ele apavorado
com o tempo da corrida
disse “desce mocinha”
e eu no volante
rolando pra lá e pra cá
gritei pro bruto
um instante!
agora nem pensar
em parar
e ele com a boca torcida
querendo fechar a braguilha
cheio de nuvens na cara
cinza como um mau dia
e eu na melodia
“solzinho da minha vida”
aguenta mais só um pouco
senão não termino hoje
este blues
ahhhhhhhhhh!
(voz de orgasmo)
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brinquedo
na gangorra
entre
a concha e a escova
na
limpeza do tempo
de
quatro numa boa
deixando
a carne do simples encaixar na fechadura
falando
até o fundo pra abrir suas bocas
atiro
nos lacres
escancarando
suas dobraduras suas sobras
suas
gorduras
quero
os olhos abertos do desvio e a escolha
subindo
ou descendo
entre
barulhos e partidos
fios
pinocchio
de mim nos meus pelos
em
movimento de mundo
sem
fim
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em cheio
pra Cássia Eller
não
sou o resto do borralho
nem
peço de joelhos
mais
pão mais beijo
não
tropeço de bobeira em escadas
não
temo ratos
a
abóbora secou
por
isso, avisa pro príncipe otário
que
eu hoje não vou ao baile
vou
dançar aqui, perto da varanda
com a
lua pelos cotovelos
nada
vai doer
e o
que é cinza vai virar azul
e o
que foi pó, chocolate
derretido
na boca
até
seu gosto
sumir
em
cheio
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em mim
quando o tempo era de rosas
sem tempo
eu era o cós do momento
e salvo engano
alada
me salvava
eu preferia as rotas
simples
com voltas
os babados eram pras outras
e as rendas
e os saltos das horas
eu só gastava querendo
o gosto fosco do vento
me atravessava
e eu ia
não como pirata
não como sua amada
mas em mim mesma
ancorada
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esse
pra Maria Bethânia
esse deus suave que me escora
e que às vezes falha
tragicamente
e que me fura os olhos e me
pede fogo
pra clamar aos deuses e
acender seu corpo
esse deus expresso do
cotidiano
que vai vindo por meias-voltas
meias-verdades
e se ajeita no caos e tropeça na boca
por seus labirintos
e que me fecha os olhos
quando abre o cinto
e pede que eu suba
e tire a maquiagem
é um deus conhecido
embora o desconheça
e o despeça na esquina
distraída
e lhe beije os olhos
recomendando
que aja como um deus
e se comporte
e tenha cuidado
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fuga de Naila, a bela
pro
Elomar
ó senhor este desgosto
muito hoje me mata
eu que com sua espada
tantos bichos matei
no pior dos escuros
ergui ponte levadiça
e travessei
ó senhor que a torre agora
sou eu
neste alto movediço
e sem trança no cabelo
como desço que
escada
alcança tão longes céus
a lua agora é ali tão linda
mas os braços não dão não
ó senhor
com que corda eu chego ainda
sem fossos sem
muralhas
aos vossos pés
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guanabaras
pro Macalé
guanabaras
me jogas na cara
e eu não ouço o mar
de reclamações
só visões
vou e não volto
subir o Rio
fio a fio
deste amor partido
deste corpo vazio
eu te devolvo
os nossos moinhos
nos janeiros que giram
sem mim
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história
pro Milton
Nascimento
que venha o amor com suas esteiras
trançar o suor e fazer dele pão
e pôr marcas nas costas
e inscrever no tempo
que existimos
meu corpo África houve tambores
que chegaram até nós
e foi no chão, na dureza
que a pele se libertou
e derramamos terra
saliva lambidas
mãos
para curar a história
e nossos braços continentes
contornaram nossas memórias
que venha o amor com suas contas
pôr colares no vento
e cobrar quem somos nós
e o que fazemos
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medieval
pra Elis
Regina
pro Aldir
Blanc
de trapo este século
descabelado
de brilho falso este
espantalho
que gira ao vento e nos trai
que reino besta estes teus
olhos parados
esta rima desencantada de
teus castelos
não há dama que aguente
este Rio aguado
não subo mais pelas tuas
pernas
largo as torres de teus
cavalos
dias sem freio
virão
e eu velocidade montada nos leitos
andada de tudo
cheia dos cavaleiros
me juntarei à cruz dos
sarracenos
e arrancarei teu açúcar dos
seios
e jogarei aos cachorros
teu pão
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não
pra
Marina
os minutos mal me cabem nas unhas
e
eu não sei agarrar o instante
por
isso, não me vire a cara
de
borco
eu
doo meus ossos pro mundo
eu
trafego no meio dos rostos
nua
de mim
assim
não
me aponte a ponte dos erros
não
me rasgue a flor dos nervos
que
eu quero boiar anônima
nas
vísceras deste rio vadio
----------xx---------
naufrágio
pro Chico
Buarque
sei que o
cotidiano vai matar
devagar
nosso mar
feito roupa
lavada
bem torcida
e sobre as
ondas eu vou gritar
e virar
jangada, à deriva
e sem vela, à
toa
eu vou dobrar
esquinas
e ver calar
as pedras
e, como se
espera
eu vou andar
em brasas
sobre águas
sem saber em
que dia este leme
mergulhado em
rochas
vai quebrar
e como em
qualquer naufrágio
eu vou errar
com os dois
olhos abertos
incertos
pelo nosso
mar
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novas
pra
Adriana Calcanhoto
nem
tristeza nem arrumo
em
estado de corte
amor
o verão acaba em Deus
e eu
estou
até aqui
pela
cozinha
nas
tripas do tempo
pisando
leve
as
plantas vão bebendo o vinho que eu não quero
ainda
entorno de dias
cato
conchas mexo mares
com
minhas colheres
alimento
meus passarinhos do acaso
amor
joguei fora minha balança
pra
ir de um extremo a outros
rostos
que me carreguem
----------xx---------
o ilusionista
pro Lula Queiroga
pro Pedro Luís
sem
destino sem sino
sem
sina sem presa
sem
mãos por parir
a
cena
teu
corpo existe
na
polpa da seda
se é
noite ou me calo
traço
em
que esquina te laço
papel
fino pele ameixeira
é um
sertão com portos
onde
me instalo
ah
narciso com calos
à mão
áspera atado
mergulho
em todo o lago
sem
me vendo
tirésias
sem me sinto
pergunto
ao oráculo
que
mina é esta
onde
me achar
se
sou embusteiro
----------xx---------
partida
minha parte espantada cresceu
quando você saiu
e nem olhou pra mim
a tarde lenta esquentou
cheia de voos vãos
e qualquer ida
me deixa sem saída
procuro entre os mares e os lápis
o que foi mesmo que perdi?
ontem eu esqueci
que a manhã é sempre sozinha
aqui
----------xx---------
preguntada
pro Zeca Baleiro
a palavra
feito burro besta
precisa de laço
precisa?
um pé depois do outro
isso é que é andar na vida
na corda bamba
à moda
dos interiores guias
e eu vou tangendo
esses dicionários dias
no estribo bambo
do fragmentado
diz aí seu moço
que doma palavras e sóis
como se faz
pra ficar doce
e chamegoso
esse cabresto fardo?
----------xx---------
quase
pro Chico César
quase alma doutro mundo
quase epicentro de tudo
com medo como
tropeço
quase recomeço
quase grito
quase arremesso
e nada se achega
mas me cego como
cela
me monto me
revelo
quase pulso
quase amélia
quase sossego
como dobra como
o liso macio
da língua amorosa
quase mito
quase minto
quase óvulo
quase muito
no momento
não me sento
não me sinto
é quase cedo
quase arcanjo
quase anuncio
logo logo o cio
neste estreito
neste vago
corpo quase árduo
quase endireito
quase mais que perfeito
quase dentro
afora
quase à moda de
quase eu
----------xx---------
resumo
a vida então passou a ser este corpo
sem sim nem não
a vida então passou a
navegar
sem sair do lugar
sem direção
sem crespas delícias de
línguas e falas
cafés nucas malas
parada no tempo
olhando atrasada
as salas as portas da casa
batendo
batendo
a vida então passou a ser
este corpo
fechado
com telas e trincos gravados
na pele
com olhos travados
olhares passados
e gritos
e gritos
----------xx---------
salto
até quando
nem os deuses sabem
os prazos da dor
e sem enxergar
vou tentando
inaugurar um mundo novo
sair do labirinto
arder é um dom de circo
me jogar na mão do outro
com uma faixa nos olhos
tateando em círculos
eu me consumi tão rápido
nos teus olhos de fogo
que nem ouvi o espanto
dos que me viram saltar
e cair no vazio
----------xx---------
tato
tateio o escuro
tateio até o cu
do mundo
tateio até o dentro
em que me possuo
cutuco até às tripas
tateio até o breve
adeus
pego leve
deus me livre
de ser deus
ateio fogo no outro
mesmo sabendo
que cometo o mesmo erro de
sempre
o inferno
sou eu
----------xx---------
texto
pro Arnaldo Antunes
o texto é o
álcool é o álcool da voz que está
cansada
o
trapézio são as cordas das pautas
de
onde o pulo parece suicídio
ou
mergulho
as
piruetas são a vida a vida dizem
enquanto
a maquiagem corre pelos trilhos da cara
que
mudamos retalhamos detalhamos
esticadas
as notas
sem
direito a ré
----------xx---------
trânsito
pra Ana Carolina
teu nome trafega nos buracos
e eu caio
neste trânsito
a cidade escorrega entre meus medos
e eu toco
pra fugir do tempo
eu roço o pânico
encordoada
há rios que não te vejo
toda manhã parece rua
burra
mas eu corrijo os espelhos
enrolo faixas
conserto sinais
tramo atalhos
desfaço nós
eu dou um jeito
eu toco pra tocar o momento
e seguir no espaço
saltando o cimento
e sair do teu trânsito
ritornello
aceso
----------xx---------
voo
pro Macalé
vamos
amor vamos
na
boca da incompletude
juntar
nossas redondas faltas
com
a lua
ou
sem ela
caminhar,
que a madrugada
nos
surra de dúvidas
nada
é nada
daquilo
que tornamos espesso
vamos
buscar os contornos
do
mar
amor
amar
é
um grande trapézio
vem
com tua outra mão
me
agarrar
no
vento
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