quarta-feira, 12 de março de 2014

MÚSICA



 pra Vera
 amizade e gratidão

pro Júlio e pro Ronald
que acreditaram


                                (in)vocação 

                                        pro Mário Quintana
                           poema musicado por Vera de Andrade


a música me cai nos ossos  nos músculos
Vinde a mim ó bruxos com seus agudos
atravessada desses sóis  mesmo no escuro
ajoelho e busco
lambê-los

quando tenho medo
arranco ritmos dos nervos
jazzo em bemol

sou amada – não sou – sou amad

                     PAUSA

que importa o meu inferno
se sou mínima ou cortada ao meio
se me sobro num outro compasso

as notas me escorrerão à revelia do meu concerto
como boca  como tudo que não tenho
pelos cantos
portanto

Levai-me ó bruxos para onde eu deveria ter sido
para o antes do mundo
para vossas claves  vossos feitiços  vossas armaduras
        ou para o total esquecimento


                                    ----------xx---------


                                        crescendo


este espaço cheira a solidão sem lume
sem goles de chá  manhãs estrangeiras                                                         
                                       dedos quentes

num exílio sem papéis  sem fósforos  
emparedado de espaços 
grades  de  grafites
sem uso

mas flui das pedras um começo úmido de signos
mas brota dos tacos um suor
macio de limo
                                          humano
coberta verde de entrelaçado vime
de falos
                      
atapetado
este espaço beira o leite do agora
que desmancha doce
interno e manso
na flauta coalhada

                         que me entras


                                       ----------xx---------

                          
                      à deriva

                            pro Fagner


procuro outro mar outra baía
aquele verde que te traduzia
depois me lembro que limpidez
é utopia

sei que as mãos não seguram nada
a beleza faz parte das águas
fica só no olhar  na memória
da nossa história
e você é pura espuma
pela frente

a perda se mistura ao verde
ausente
por aqui não há água nenhuma
nem veleiros  nem deslizes
nem erros

como se atraca no nada?

tanta corda  tanto laço
mas nesse barco
como faço
se continuo sozinha

e no fim do dia
o que me resta para navegar
esse mar com fim
e a sua paisagem sem Deus
desesperadamente verde
presa na minha retina


                                    ----------xx--------- 


                          alice 
  
vou tocando crua estas chaves
abrindo-me nos ossos nos espelhos
pelas ruas vejo olhos e nomes
abandonados e piolhos neste tempo

nada a declarar  o Rio não se esconde
das pedradas  dos tiros  dos andares
do futuro caranguejo

eleitos com beijos sujos
presos às grades e aos músculos
nus que flutuam sem pintura
com as caras coladas e as pernas na lua
pisadas na bunda e eu
na pele nos buracos nas fechaduras
nas camas nas paisagens nas costuras
tentando ver


                                    ----------xx---------

                              
                        ausência

                                pro Djavan


Aquele que não vem
vai chover sobre a sala
e eu vou plantar papéis
guerrilhas  retaguardas
e caminhar afogada
em mim
calada
nesta sala
que ninguém vai ver

Aquele que não vem
me vai na correnteza
salgada
desta sala
e eu vou fazer crescer
uma crença  um desgosto
um sol desfeito por dentro
até me perder
no seu rosto
que eu não vou ver 


                         ----------xx---------


                        blues

                                     pro Raulzito


estiquei os braços pro dia
e disse pra ele
só um instante
não acabei ainda
este blues

e ele apavorado
com o tempo da corrida
disse “desce mocinha”

e eu no volante
rolando pra lá e pra cá
gritei pro bruto
um instante!
agora nem pensar
em parar

e ele com a boca torcida
querendo fechar a braguilha
cheio de nuvens na cara
cinza como um mau dia

e eu na melodia
“solzinho da minha vida”
aguenta mais  só um pouco
senão não termino hoje
este blues

ahhhhhhhhhh!

(voz de orgasmo)


                          ----------xx---------

               

        brinquedo  

 

na gangorra
entre a concha e a escova
na limpeza do tempo
de quatro numa boa

deixando a carne do simples encaixar na fechadura
falando até o fundo pra abrir suas bocas
atiro nos lacres
escancarando suas dobraduras suas sobras
suas gorduras

quero os olhos abertos do desvio e a escolha
subindo ou descendo
entre barulhos e partidos
fios
pinocchio de mim nos meus pelos
em movimento de mundo
sem fim


                            ----------xx---------


                              em cheio

                              pra Cássia Eller


não sou o resto do borralho
nem peço de joelhos
mais pão mais beijo
não tropeço de bobeira em escadas
não temo ratos
a abóbora secou

por isso, avisa pro príncipe otário
que eu hoje não vou ao baile
vou dançar aqui, perto da varanda
com a lua pelos cotovelos
nada vai doer
e o que é cinza vai virar azul
e o que foi pó, chocolate
derretido na boca
até seu gosto
sumir
em cheio 


                                  ----------xx---------


                                 em mim


quando o tempo era de rosas
sem tempo
eu era o cós do momento

e salvo engano
alada
me salvava

eu preferia as rotas
simples
com voltas

os babados eram pras outras
e as rendas
e os saltos das horas
eu só gastava querendo

o gosto fosco do vento
me atravessava
e eu ia

não como pirata
não como sua amada
mas em mim mesma
ancorada


                              ----------xx---------



                                esse                                                                          

                                   

                                    pra Maria Bethânia



esse deus suave que me escora 
e que às vezes falha
tragicamente
e que me fura os olhos e me pede fogo
pra clamar aos deuses e acender seu corpo

esse deus expresso do cotidiano
que vai vindo por meias-voltas  meias-verdades
e se ajeita no caos  e tropeça na boca
por seus labirintos

e que me fecha os olhos
quando abre o cinto
e pede que eu suba
e tire a maquiagem

é um deus conhecido
embora o desconheça
e o despeça na esquina
distraída
e lhe beije os olhos
recomendando
que aja como um deus
e se comporte
e tenha cuidado


                                           ----------xx---------


                     fuga de Naila, a bela

                                 pro Elomar


ó senhor este desgosto
muito hoje me mata
eu que com sua espada
tantos bichos matei
no pior dos escuros
ergui ponte levadiça
e travessei

ó senhor que a torre agora
sou eu
neste alto movediço
e sem trança no cabelo
como desço  que escada
alcança tão longes céus

a lua agora é ali tão linda
mas os braços não dão não
ó senhor
com que corda eu chego ainda
sem fossos  sem muralhas
aos vossos pés     


                                       ----------xx---------
               

                       guanabaras

                                     pro Macalé


               guanabaras
me jogas na cara
e eu não ouço o mar
de reclamações
só visões

vou e não volto
subir o Rio
fio a fio
deste amor partido
deste corpo vazio

eu te devolvo
os nossos moinhos
nos janeiros que giram
sem mim


                           ----------xx---------

                               
                        história

                          pro Milton Nascimento


que venha o amor com suas esteiras
trançar o suor e fazer dele pão
e pôr marcas nas costas
e inscrever no tempo
que existimos

meu corpo África houve tambores
que chegaram até nós
e foi no chão, na dureza
que a pele se libertou

e derramamos terra
saliva  lambidas  mãos
para curar a história
e nossos braços continentes
contornaram nossas memórias

que venha o amor com suas contas
pôr colares no vento
e cobrar quem somos nós

e o que fazemos


                                      ----------xx---------


                               medieval

                                   pra Elis Regina
                                   pro Aldir Blanc
                                  

de trapo este século descabelado
de brilho falso este espantalho
que gira ao vento e nos trai

que reino besta estes teus olhos parados
esta rima desencantada de teus castelos
não há dama que aguente
este Rio aguado

não subo mais pelas tuas pernas
largo as torres de teus cavalos
dias sem freio
virão

e eu velocidade  montada nos leitos
andada de tudo
cheia dos cavaleiros
me juntarei à cruz dos sarracenos
e arrancarei teu açúcar dos seios
e jogarei aos cachorros
teu pão


                                         ----------xx---------


                                        não

                                   pra Marina 


os minutos mal me cabem nas unhas
e eu não sei agarrar o instante
por isso, não me vire a cara
de borco

eu doo meus ossos pro mundo
eu trafego no meio dos rostos
nua de mim
assim
não me aponte a ponte dos erros
não me rasgue a flor dos nervos
que eu quero boiar anônima
nas vísceras deste rio vadio


                                       ----------xx---------


                                     naufrágio

                                    pro Chico Buarque


sei que o cotidiano vai matar
devagar
nosso mar
feito roupa lavada
bem torcida

e sobre as ondas eu vou gritar
e virar jangada, à deriva

e sem vela, à toa
eu vou dobrar esquinas
e ver calar as pedras

e, como se espera
eu vou andar em brasas
sobre águas
sem saber em que dia este leme
mergulhado em rochas
vai quebrar

e como em qualquer naufrágio
eu vou errar
com os dois olhos abertos
incertos
pelo nosso mar


                                 ----------xx---------



                 novas

                 pra Adriana Calcanhoto


nem tristeza nem arrumo
em estado de corte
amor o verão acaba em Deus
e eu
estou até aqui
pela cozinha
nas tripas do tempo
pisando leve

as plantas vão bebendo o vinho que eu não quero
ainda entorno de dias
cato conchas  mexo mares
com minhas colheres
alimento meus passarinhos do acaso

amor joguei fora minha balança
pra ir de um extremo a outros
rostos que me carreguem


                                   ----------xx---------


            o ilusionista

                    pro Lula Queiroga
                    pro Pedro Luís


sem destino sem sino
sem sina sem presa
sem mãos por parir
a cena
teu corpo existe
na polpa da seda

se é noite ou me calo
traço
em que esquina te laço

papel fino  pele ameixeira
é um sertão com portos
onde me instalo

ah narciso com calos
à mão áspera atado
mergulho em todo o lago
sem me vendo
  
tirésias sem me sinto
pergunto ao oráculo
que mina é esta
onde me achar
se sou embusteiro


                       ----------xx---------


             partida


minha parte espantada cresceu
quando você saiu
e nem olhou pra mim

a tarde lenta esquentou
cheia de voos vãos
e qualquer ida
me deixa sem saída

procuro entre os mares e os lápis
o que foi mesmo que perdi?
ontem eu esqueci
que a manhã é sempre sozinha
aqui


                                                ----------xx---------


                                         preguntada

                                        pro Zeca Baleiro            


a palavra
feito burro besta
precisa de laço
precisa?

um pé depois do outro
isso é que é andar na vida
na corda bamba
à moda
dos interiores guias

e eu vou tangendo
esses dicionários dias
no estribo bambo
do fragmentado

diz aí seu moço
que doma palavras e sóis
como se faz
pra ficar doce
e chamegoso
esse cabresto fardo?


                   ----------xx---------


                                  quase

                                      pro Chico César


quase alma doutro mundo
quase epicentro de tudo
com medo  como tropeço
quase recomeço

quase grito  quase arremesso
e nada se achega
mas me cego  como cela
me monto  me revelo

quase pulso  quase amélia
quase sossego
como dobra  como o liso macio
da língua amorosa

quase mito  quase minto
quase óvulo  quase muito
no momento
não me sento  não me sinto
é quase cedo

quase arcanjo  quase anuncio
logo logo o cio
neste estreito  neste vago
corpo quase árduo
quase endireito
quase mais que perfeito
quase dentro  afora
quase à moda de
quase eu


                            ----------xx---------


resumo


                               pra Nana Caymmi


a vida então passou a ser este corpo
sem sim nem não

a vida então passou a navegar
sem sair do lugar
sem direção

sem crespas delícias de línguas e falas
cafés nucas malas

parada no tempo
olhando atrasada
as salas as portas da casa
batendo
batendo

a vida então passou a ser este corpo
fechado
com telas e trincos gravados
na pele

com olhos travados
olhares passados
e gritos
e gritos

                                     ----------xx---------



       salto


até quando
nem os deuses sabem
os prazos da dor
e sem enxergar
vou tentando
inaugurar um mundo novo
sair do labirinto

arder é um dom de circo
me jogar na mão do outro
com uma faixa nos olhos
tateando em círculos

eu me consumi tão rápido
nos teus olhos de fogo
que nem ouvi o espanto
dos que me viram saltar
e cair no vazio


                          ----------xx---------


               tato


tateio o escuro
tateio até o cu
do mundo

tateio até o dentro
em que me possuo

cutuco até às tripas
tateio até o breve
adeus
pego leve
deus me livre
de ser deus

ateio fogo no outro
mesmo sabendo
que cometo o mesmo erro de sempre
o inferno
sou eu


                                    ----------xx---------  


                texto

                                   pro Arnaldo Antunes


o texto é o álcool  é o álcool da voz que está cansada
o trapézio são as cordas das pautas
de onde o pulo parece suicídio
ou mergulho

as piruetas são a vida  a vida dizem
enquanto a maquiagem corre pelos trilhos da cara
que mudamos retalhamos detalhamos
esticadas as notas
sem direito a ré 


                                      ----------xx---------


                        trânsito

                              pra Ana Carolina                     


teu nome trafega nos buracos
e eu caio
neste trânsito

a cidade escorrega entre meus medos
e eu toco
pra fugir do tempo

eu roço o pânico
encordoada
há rios que não te vejo

toda manhã parece rua
burra
mas eu corrijo os espelhos

enrolo faixas  conserto sinais
tramo atalhos  desfaço nós
eu dou um jeito
  
eu toco pra tocar o momento
e seguir no espaço
saltando o cimento
e sair do teu trânsito
ritornello
aceso

                                      ----------xx---------


                                   voo

                                       pro Macalé
                                    
  
vamos amor vamos
na boca da incompletude
juntar nossas redondas faltas
com a lua
ou sem ela
caminhar, que a madrugada
nos surra de dúvidas

nada é nada
daquilo que tornamos espesso
vamos buscar os contornos
do mar
amor amar
é um grande trapézio
vem com tua outra mão
me agarrar
no vento




























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