segunda-feira, 10 de março de 2014

FUNDAÇÕES (Poema em 15 poemas)

 Só há um meio para matar os monstros:   aceitá-los.                      
                                                      (Julio Cortázar)                                            

           pra H.H.                
                                      pro Gilles                                         
                 pro Jorge Fernandes


Já fui ilhas. Olhava o olho largo dos faróis
insistindo em iluminar para dentro
e cada vez mais
o fora apodrecia; os braços cortados prematuramente
batiam na orla, na baía dos lençóis
dos olhos brancos de poda

A surdez era um reclame. O outro perturbação
um emaranhado raso costumeiro
um confuso marulho de pelos
em tufos
que eu varria
sem deixar farelos  fardos  cardos  anatomias
sem humana possível habitação
nenhum cheiro me habitava
nenhum sabor me concernia
nenhum provável chão

só rasgos, rasuras desautorizadas
e poros esticados até o não poder
cais do mais
deserto profundo doer
da pele abandonada  sulcada
náufraga
de solidão


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O outro era um torto ventríloquo da Mesma
desenhada em pedras  cunhada em arabescos
marionete do falo alheio
sem decifração

esfinge sem macios me devorava a esmo
e me deixava entre seus Internos
quartos dentro de um quarto
em infinito primitivo caracol

lesma sem casa a Mesma me arrastava
e eu dormia sem sol com frio
entre as peles-paredes que a Mesma arrancava
com os cantos das unhas
dos outros-outros habitantes esvaziados
por Ela

E os outros-eles não me viam
em suas pressas
só a besta impressa na Mesma
áspera visão


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Tentava ouvir o mundo, o que tivesse pernas
o que fosse movimento
caranguejo ou pão

passava a língua pelas pedras
que se espalhavam pelas tripas
tentava ouvir a luz
e eu reluzia e eu
provava
aquela baía

guanabara sem ossos, o que eu poderia
doçura ou cascas de tentativa
mas não

morria a varejo
por dia
descamando-me em ilhas
atulhada de antolhos
sem chão


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A borda vinha  eu segurava
e eu a perdia
com as vísceras amarradas
o enjoo vinha e ia
do estômago que fervia
de urubu me chamavas

o hálito  o hábito calcava-me pelas entranhas
largava as mãos para cair no nada
mas o nada não vinha

os desejos vomitados
nas fortes amarras
no oco do vento
O NADA ERA MEU ROSTO
meu rosto era o nada


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Como poderia ser peixe útil  comestível
se era aproveitada pelo rabo  pela espinha
o melhor de mim se afogava num aquário
de onde eu olhava
os outros-peixes que me invejavam
sem trocas  sem migrações

um peixe mole  mímico  desalentoso
que brilhava entre os escuros
acamado  fatídico  sem pulso
um peixe  uma sereia
em diluição


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Derramava-me em desastres
e escorria translúcida
suando armas pelos dedos

precisava estar nua de esquinas
tocada por esponjas  álcoois  mordidas  apalpadelas
para estar presente no tempo
mas o tempo não me tocava


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Deixava-me para aproveitar-me
olhava-me de fora de onde eu era
nesse móbile

de carne esponjosa absorvia o mundo
mas o cuspia
manejada precária me atravessava
como um rio alheio me via
e me negava

a Deusa tocava o mundo e ele desandava
o feminino era jogado fora
a Deusa governava gritava A Casa é Minha
e eu resistia, batia as portas
de dentro
e calava  empurrando mais para dentro ainda
o que sobrava


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Ela navega  a louca
com os braços brancos torneados como remos
pensa-se pouca e arranca
até ao nu o ronco surdo dos segundos
e se trafega
como sem saber num corpo

fora do século  cheira a abandono
a subúrbio  a desmazelo  a rimas
e nem sabe estragada que a louca é Aquela Outra
A do lado


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Cresce um monstro negro  sórdido  violento
a Besta abre a boca  engole chamas  cospe moscas
o avesso pastoso do medo
o Nada do teto vazio
sem fios  sem telegramas
a morta cara da Louca

Viu o delírio emborcado nos cascalhos
do corpo jogado fora
viu as vozes cegas desconectando
o que sobrava
o mofo oco dos corais sem cor

viu tudo isso que era o Nada
até que Ele penetrou nas tripas
se espalhou pelo sangue
e voltou


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Ele recoberto de véus  fios partidos
Ele sentado me olhando
nem pai  nem Deus
um rio se mastigando
entre marés

fios novos  novas teias  nós companheiros
um outro Rio me distendendo


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                                   PER CURSO

amava sem músculos
os remos partiam  eu olhava
as madeiras à deriva dos dias
suas fissuras invadidas
por meu sal  e carcomida
EU GRITAVA eu
sem língua
por uma boia  coisas modernas
filtros e pães
cremes de amenizar mordidas
que seguiam se infiltrando pelos poros e saíam
pelo mar buscando

onde cheguei:
frondosa  enraizada
a inimiga agora  a moura armada
meio loura  até os dentes
verdadeira marinheira que trafega
entre carros
afastada dos barcos  por prudência
e continua até os ossos  aos berros
buscando o Outro  pelos séculos
este estranho que me escorrega
das mãos


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Cansei de ser nada
pulso imundo jogado para fora
de mim
quero as vísceras do agora
amarradas ao cabo seguro
do instante
que navega oco (é verdade)
e depende dos meus estios

vou onde cabem minhas pernas
e as minhas pernas podem o mundo
que me dá o outro
às vezes voo raso de malabarismo
às vezes Aquele vazio

O que me me custa muito ou a pouquidão
envolto no fofo rouco sem brios
do meu grito

QUE VENHA E DEITE
E ROLE
E QUE ASSUMA UMA FACE AO MENOS
OU A MAIS  A QUE TEMOS DIREITO

mas que seja pleno e me leve
para dentro  e me solte
junto ao gozo
para ficar uns dias
de visita
e encher de possíveis
meu porão


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Boiar
ser esta pele calma
boia lúcida de mim mesma
com os braços recolocados  florescidos
aprender o tato do falo
sofrer enxertos

enfiar a palma na palma deste mundo largo
e nadar até o alto desses grandes lábios
e recolocar esta potente casa sobre o peito
e me deixar levar  onde há marulho  há água
há outro a capinar
há homens como brisas a alisar os pelos

e inventar continentes sobre asfaltos
e mastigar os saborosos absurdos dos acertos
e ser peixe inteiro e ser ser inteiro
na totalidade dos veios

e me deixar abrir
a caixa fechada  pesada  obtusa
desembolar-me das grutas escuras


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Boiar
deixar-me penetrar
e fazer do Rio  ruas  rostos  cotovelos  cinemas
baía flexível  outro mar
e agradecer ao público pelo conserto

desaguar bem larga  boiar
sob este sol  e resgatar-me 
perna sobre perna 
pedestremente


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Já fui ilhas.
Mas hoje
aprecio os pequenos navios  os botes  os fracos
pontos luminosos que nos levam onde não sabemos
os barcos  os obscuros  esses que nos moram
confusos que nos rondam  nossos desacertos
as migalhas dos portos  a lama com pão
qualquer lótus  lote humano
algum outro feito
bordado arqueado sob a minha pele
navegando meus porões

o ar volta e eu respiro
o traçado do desejo
o livro  a cria  os laços  a fundação
do ontem finalmente embarcado
orientado para ficar para trás

e daqui, do outro lado
os outros  a Outra

nos arpões





J

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