Só há um meio para matar os monstros: aceitá-los.
(Julio Cortázar)
pra H.H.
pro Gilles
pro Jorge Fernandes
Já fui ilhas.
Olhava o olho largo dos faróis
insistindo em
iluminar para dentro
e cada vez
mais
o fora
apodrecia; os braços cortados prematuramente
batiam na
orla, na baía dos lençóis
dos olhos
brancos de poda
A surdez era
um reclame. O outro perturbação
um emaranhado
raso costumeiro
um confuso
marulho de pelos
em tufos
que eu varria
sem deixar
farelos fardos cardos
anatomias
sem humana
possível habitação
nenhum cheiro
me habitava
nenhum sabor
me concernia
nenhum
provável chão
só rasgos,
rasuras desautorizadas
e poros
esticados até o não poder
cais do mais
deserto
profundo doer
da pele
abandonada sulcada
náufraga
de solidão
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O outro era
um torto ventríloquo da Mesma
desenhada em
pedras cunhada em arabescos
marionete do
falo alheio
sem
decifração
esfinge sem
macios me devorava a esmo
e me deixava
entre seus Internos
quartos
dentro de um quarto
em infinito
primitivo caracol
lesma sem
casa a Mesma me arrastava
e eu dormia
sem sol com frio
entre as
peles-paredes que a Mesma arrancava
com os cantos
das unhas
dos
outros-outros habitantes esvaziados
por Ela
E os
outros-eles não me viam
em suas
pressas
só a besta
impressa na Mesma
áspera visão
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Tentava ouvir o mundo, o que tivesse pernas
o que fosse movimento
caranguejo ou pão
passava a língua pelas pedras
que se espalhavam pelas tripas
tentava ouvir a luz
e eu reluzia e eu
provava
aquela baía
guanabara sem ossos, o que eu poderia
doçura ou cascas de tentativa
mas não
morria a varejo
por dia
descamando-me em ilhas
atulhada de antolhos
sem chão
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A borda vinha
eu segurava
e eu a perdia
com as vísceras amarradas
o enjoo vinha e ia
do estômago que fervia
de urubu me chamavas
o hálito o
hábito calcava-me pelas entranhas
largava as mãos para cair no nada
mas o nada não vinha
os desejos vomitados
nas fortes amarras
no oco do vento
O NADA ERA MEU ROSTO
meu rosto era o nada
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Como poderia ser peixe útil comestível
se era aproveitada pelo rabo pela espinha
o melhor de mim se afogava num aquário
de onde eu olhava
os outros-peixes que me invejavam
sem trocas sem
migrações
um peixe mole
mímico desalentoso
que brilhava entre os escuros
acamado
fatídico sem pulso
um peixe uma
sereia
em diluição
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Derramava-me em desastres
e escorria translúcida
suando armas pelos dedos
precisava estar nua de esquinas
tocada por esponjas álcoois
mordidas apalpadelas
para estar presente no tempo
mas o tempo não me tocava
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Deixava-me para aproveitar-me
olhava-me de fora de onde eu era
nesse móbile
de carne esponjosa absorvia o mundo
mas o cuspia
manejada precária me atravessava
como um rio alheio me via
e me negava
a Deusa tocava o mundo e ele desandava
o feminino era jogado fora
a Deusa governava gritava A Casa é Minha
e eu resistia, batia as portas
de dentro
e calava
empurrando mais para dentro ainda
o que sobrava
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Ela navega a louca
com os braços brancos torneados
como remos
pensa-se pouca e arranca
até ao nu o ronco surdo dos
segundos
e se trafega
como sem saber num corpo
fora do século cheira a abandono
a subúrbio a desmazelo
a rimas
e nem sabe estragada que a louca
é Aquela Outra
A do lado
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Cresce um monstro negro sórdido
violento
a Besta abre a boca engole chamas
cospe moscas
o avesso pastoso do medo
o Nada do teto vazio
sem fios sem telegramas
a morta cara da Louca
Viu o delírio emborcado nos
cascalhos
do corpo jogado fora
viu as vozes cegas
desconectando
o que sobrava
o mofo oco dos corais sem cor
viu tudo isso que era o Nada
até que Ele penetrou nas
tripas
se espalhou pelo sangue
e voltou
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Ele recoberto de véus
fios partidos
Ele sentado me olhando
nem pai nem
Deus
um rio se mastigando
entre marés
fios novos
novas teias nós companheiros
um outro Rio me distendendo
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das mãos
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PER CURSO
amava sem músculos
os remos partiam eu olhava
as madeiras à deriva dos dias
suas fissuras invadidas
por meu sal e carcomida
EU GRITAVA eu
sem língua
por uma boia coisas modernas
filtros e pães
cremes de amenizar mordidas
que seguiam se infiltrando pelos poros e saíam
pelo mar buscando
onde cheguei:
frondosa enraizada
a inimiga agora a moura armada
meio loura até os dentes
verdadeira marinheira que trafega
entre carros
afastada dos barcos por prudência
e continua até os ossos aos berros
buscando o Outro pelos séculos
este estranho que me escorrega
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Cansei de ser nada
pulso imundo jogado para fora
de mim
quero as vísceras do agora
amarradas ao cabo seguro
do instante
que navega oco (é verdade)
e depende dos meus estios
vou onde cabem minhas pernas
e as minhas pernas podem o mundo
que me dá o outro
às vezes voo raso de malabarismo
às vezes Aquele vazio
O que me me custa muito ou a pouquidão
envolto no fofo rouco sem brios
do meu grito
QUE VENHA E DEITE
E ROLE
E QUE ASSUMA UMA FACE AO MENOS
OU A MAIS A QUE TEMOS DIREITO
mas que seja pleno e me leve
para dentro e me solte
junto ao gozo
para ficar uns dias
de visita
e encher de possíveis
meu porão
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Boiar
ser esta pele calma
boia lúcida de mim mesma
com os braços recolocados florescidos
aprender o tato do falo
sofrer enxertos
enfiar a palma na palma deste mundo largo
e nadar até o alto desses grandes lábios
e recolocar esta potente casa sobre o peito
e me deixar levar
onde há marulho há água
há outro a capinar
há homens como brisas a alisar os pelos
e inventar continentes sobre asfaltos
e mastigar os saborosos absurdos dos acertos
e ser peixe inteiro e ser ser inteiro
na totalidade dos veios
e me deixar abrir
a caixa fechada
pesada obtusa
desembolar-me das grutas escuras
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Boiar
deixar-me penetrar
e fazer do Rio ruas
rostos cotovelos cinemas
baía flexível outro mar
e agradecer ao público pelo
conserto
desaguar bem larga boiar
sob este sol e resgatar-me
perna sobre perna
pedestremente
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Já fui ilhas.
Mas hoje
aprecio os pequenos navios os botes
os fracos
pontos luminosos que nos levam
onde não sabemos
os barcos os obscuros esses que nos moram
confusos que nos rondam nossos desacertos
as migalhas dos portos a lama com pão
qualquer lótus lote humano
algum outro feito
bordado arqueado sob a minha
pele
navegando meus porões
o ar volta e eu respiro
o traçado do desejo
o livro a cria
os laços a fundação
do ontem finalmente embarcado
orientado para ficar para trás
e daqui, do outro lado
os outros a Outra
nos arpões
J
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